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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Notícia - Cientistas portugueses invalidam um dos dogmas da biologia


Há 270 milhões de anos, uns bocadinhos do património genético de diminutos fungos, que até lá não tinham nada de particular, começaram a sofrer uma mudança de identidade. Normalmente, os fungos, do género Candida – não deveriam ter sobrevivido a tal alteração genética – mas sobreviveram, ao ponto que são hoje os principais responsáveis pelas infecções fúngicas nos seres humanos. Como é que foi possível? A sequenciação dos genomas de uma série de espécies deste fungo permitiu agora explicar este aparente paradoxo.

O genoma dos seres vivos é uma grande molécula, feita do encadeamento de quatro moléculas de base, a que chamamos “letras” para respeitar a metáfora segundo a qual o genoma contém as “instruções” para a construção de cada tipo de organismo. Grosso modo, cada “palavra” de três letras consecutivas, ou “codão”, codifica um dos 20 aminoácidos, os tijolos de construção que as células vivas utilizam para fabricar as suas proteínas, componentes essenciais dos tecidos biológicos. Aminoácidos esses que o organismo vai buscar às proteínas animais contidas nos alimentos.

Desde a descoberta dos codões, há uns 50 anos atrás, pensava-se que essa correspondência codão-aminoácido – o chamado “código genético” – era comum a todos os organismos vivos, universal. O argumento era que, uma vez o código genético fixado, de uma vez por todas, nos primórdios da evolução das espécies, já não podia ser alterado sem consequências funestas para o organismo afectado.

No fim da década de 80, porém, Manuel Santos e a sua equipa da Universidade de Aveiro foram dos primeiros grupos do mundo a propor que isso não era bem assim: descobriram que as Candida conseguiram sobreviver apesar de ter sofrido uma alteração do seu código genético que deveria ter sido perfeitamente tóxica. Num trabalho hoje publicado em consórcio internacional na revista “Nature”, explicam pela primeira vez, graças à análise comparativa dos genomas de várias espécies diferentes de Candida, como é que essa “mudança de identidade” teve concretamente lugar.

“O nosso resultado tem implicações tremendas do ponto de vista biológico”, disse-nos em conversa telefónica Manuel Santos. “Significa que o código genético não é universal. Já tínhamos descoberto essas alterações há uns anos, mas com este estudo conseguimos perceber como é que essa evolução aconteceu.”

Basicamente, nas Candida, o codão que inicialmente mandava colocar no sítio correspondente da proteína em construção um aminoácido chamado leucina, passou a comandar a colocação de um outro aminoácido, a serina. E esta alteração do código genético “deveria ter sido letal”, repete Manuel Santos.

Mas esse codão não mudou repentinamente de identidade; pelo contrário, fê-lo muito gradualmente, ao longo de milhões de anos. “Há 270 milhões de anos, esse codão começou a mudar e adquiriu duas identidades diferentes”, diz ainda Manuel Santos. A maior parte das vezes, continuava a comandar a colocação de leucina, mas de vez em quando colocava serina. A seguir – e é este o segredo do sucesso da operação –, “durante 100 milhões de anos, esse codão desapareceu praticamente do genoma dos fungos. E quando reemergiu, com a sua segunda identidade, foi em posições onde já não era tóxico para os genes”. Um belo truque evolutivo.

Para que é que serve este tipo de alteração ao código genético? “Não sabemos”, responde-nos Manuel Santos. Mas acrescenta logo: “Estes fungos têm uma enorme necessidade de contornar o sistema imunitário humano. Uma possibilidade é que esta alteração do código genético seja um mecanismo compensatório destinado a aumentar a diversidade genética das Candida, que só muito raramente se reproduzem de forma sexuada”. Os organismos que apenas se reproduzem de forma assexuada formam colónias de clones, geneticamente idênticos – e portanto, têm dificuldade em resistir aos ataques do sistema imunitário dos seus hospedeiros.

Um outro dos aspectos agora esclarecidos por este trabalho prende-se precisamente com a reprodução destes fungos. “Há décadas que a reprodução sexuada dos fungos era objecto de intenso debate”, frisa Manuel Santos. “Pensava-se que não havia reprodução sexuada nestes organismos. Mas ela é importante para gerar diversidade genética. Agora, a sequenciação dos genomas de Candida clarificou definitivamente esta questão: algumas espécies possuem genes de reprodução sexuada e outras não. Contudo, naquelas que apresentam uma reprodução sexuada, ela só acontece muito raramente, sendo normalmente assexuada” – isto é, por fissão celular.

Normalmente, as candidíases manifestam-se como lesões cutâneas e podem ser facilmente tratadas com medicamentos antifúngicos. Mas, em caso de deficiência imunitária, podem ser letais, espalhando-se para o fígado, os pulmões, o cérebro. Põem em risco bebés prematuros, doentes transplantados, pessoas com HIV. E algumas espécies estão a tornar-se resistentes.

O que faz com que uma espécie de Candida seja patogénica e outra inócua? Este é um dos aspectos ainda pouco claros. Mas os resultados hoje publicados permitem começar a desvendar o mistério. “A sequenciação dos genomas e a sua comparação mostrou que as espécies patogénicas possuem um conjunto de genes envolvidos na patogénese” diz Manuel Santos, que liderou a participação portuguesa no trabalho.

Mais precisamente, o seu genoma contém um maior número de cópias de uma série de genes que codificam o fabrico de proteínas, chamadas adesinas, que comandam a síntese de proteínas da parede celular destes fungos. “São elas que interagem com as células humanas”, frisa Manuel Santos, “e isso é importante para a adaptação do fungo ao sistema imunitário do hospedeiro”, adaptação que condiciona a manutenção da infecção. “Este resultado é muito importante porque pode permitir desenvolver novos antifúngicos”, conclui.

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