Ao contrário do que se poderia supor, as cidades não são domínio exclusivo dos seres humanos. Nos jardins, lagos, hortas e edifícios é possível encontrar uma miríade de seres vivos que aprendeu a tirar partido dos habitats das nossas urbes.
Ao contrário do que muitas pessoas poderiam supor, as cidades não são domínio exclusivo dos seres humanos. Nos jardins, lagos, hortas e edifícios é possível encontrar uma miríade de seres vivos que aprendeu a tirar partido dos diferentes habitats das nossas urbes. São aves e mamíferos, mas também répteis e anfíbios cuja vizinhança muitas vezes desconhecemos mas que partilham connosco a selva urbana.
Quando há 12 000 anos atrás surgiram, no Crescente Fértil, as primeiras cidades, dificilmente os seus habitantes poderiam imaginar que milhares de anos mais tarde as suas urbes de adobe, madeira e pedra, haveriam de evoluir para gigantescas «ilhas» de tijolo, vidro, betão e aço onde vivem actualmente mais de 1500 milhões de pessoas. Talvez as cidades modernas tenham poucos encantos naturais quando comparadas com as primitivas cidades Sumérias, apesar disso também elas se converteram em redutos ecológicos importantes para inúmeras espécies de animais selvagens, a ponto destas chegarem a ser consideradas como ecossistemas completos nos quais a biodiversidade se relaciona entre si e com o meio envolvente com a mesma perfeição com que o faz nos espaços inalterados pelo Homem.
Mas o que terá levado tantas espécies animais, algumas delas raras nos seus habitats naturais, a ocupar estes ambientes artificiais criados pelo Homem, a adaptar-se a eles e a prosperar? Aparentemente, a resposta é simples: abundância de alimento, fruto dos desperdícios orgânicos dos habitantes humanos; ausência quase total de predadores e maior tolerância por parte dos seres humanos; abundância de abrigos e nichos ecológicos (ex.: casas abandonadas, ruínas, torres de igrejas, cemitérios, telhados, varandas, terraços, pátios, jardins, hortas, árvores, lagos, fontes, esgotos e todo o tipo de canalizações subterrâneas); e condições climatéricas mais acolhedoras, sobretudo em termos de temperatura, pois as cidades funcionam como «ilhas de calor» que, em média, registam temperaturas 1,5 ºC acima dos valores que se verificam fora do espaço urbano. Em certos casos, a adaptação à vida urbana foi de tal forma bem sucedida que algumas espécies de animais simplesmente deixaram de conseguir sobreviver sem a presença do Homem, como acontece, por exemplo, com os vulgares pardais-domésticos (Passer domesticus), que não sobrevivem em povoações que tenham sido abandonadas pelos residentes humanos.
Mas nem tudo são rosas para esta fauna urbana. Exposta a todo o tipo de perigos, os animais da cidade têm uma esperança média de vida relativamente curta, situação viável apenas devido a uma elevada fertilidade que permite a algumas espécies contrabalançar as pesadas perdas provocadas por factores como a poluição atmosférica; o excesso de ruído; os atropelamentos; a falta de refúgios nas edificações modernas; a escassez de vegetação; e até o elevado nível de stress a que muitas «espécies urbanas» estão sujeitas, como o comprovam estudos etológicos realizados em populações de aves urbanas, segundo os quais estes animais apresentam níveis de stress e hiperactividade comparáveis aos de um alto executivo humano.
Dependendo da localização e da quantidade e qualidade dos habitats disponíveis, as cidades atraem maior ou menor diversidade de animais. De todos os grupos de animais que frequentam ou habitam as nossas cidades, as aves são, claramente, o mais abundante. Mas não se pense que as aves se resumem aos pardais, às pombas, às gaivotas ou às andorinhas. Com efeito, a elevada capacidade de adaptação das aves, aliada a uma maior diversidade de espécies, converteu-as em verdadeiras estrelas da nossa fauna urbana, proporcionando às populações de muitas cidades portuguesas, nomeadamente daquelas onde abundam parques e jardins, terrenos baldios e/ou zonas ribeirinhas, a oportunidade de tomar contacto com o mundo novo da «ornitologia urbana».
Lisboa possui, talvez, a maior e mais estudada comunidade de aves urbanas do país. De acordo com Hélder Costa, ornitólogo da SPEA (Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves) e autor do livro Lisboa AVES, «nidificam actualmente em Lisboa cerca de 28 espécies, embora o número total de espécies registadas ronde as 138». Apesar deste número, poucos serão os lisboetas que conhecem verdadeiramente as suas aves. Com efeito, refere este ornitólogo, «com excepção dos pombos, das gaivotas e dos pardais, de uma forma geral, a maior parte dos lisboetas não se apercebe muito da existência de aves da cidade» o que, tendo em conta a profusão de espécies que ocupa a capital, não deixa de ser sintomático do alheamento dos habitantes humanos face aos seus vizinhos alados. Na verdade, a maioria dos lisboetas continua a desconhecer que entre os seus vizinhos se incluem espécies tão singulares como, por exemplo, os flamingos (Phoenicopterus ruber) que por vezes aparecem na zona do Parque Expo; os peneireiros (Falco tinnunculus) que nidificam desde o final da década de 90 nos respiradouros da Torre do Tombo e que frequentam algumas zonas da cidade, especialmente onde ainda subsistem terrenos baldios, parques de média dimensão ou restos de antigas quintas (zona do aeroporto, zona das Olaias, etc.); os andorinhões-pálidos (Apus pallidus), que criam em grande número nos edifícios antigos do centro histórico; as alvéolas-brancas (Motacilla alba), que se aglomeram às dezenas todas as noites nas árvores-dormitório da Praça de Espanha; os falcões-peregrinos (Falco peregrinus), que por vezes sobrevoam o parque Eduardo VII ou utilizam as pontes 25 de Abril e Vasco da Gama como poiso altaneiro; ou ainda as esquivas garças-nocturnas (Nycticorax nycticorax), que por vezes frequentam os lagos dos jardins da cidade, como acontece no Hospital D. Estefânia.
Do Minho ao Algarve, o rol de cidades e vilas onde se observam toda a sorte de aves, algumas das quais raras, é surpreendentemente longo. Em Viana do Castelo ou em Caminha, por exemplo, as marginais, situadas respectivamente nas margens do estuário do rio Lima e Minho, são frequentemente local de poiso e passeatas de aves aparentemente tão estranhas à cidade como o maçarico-das-rochas (Actitis hypoleucos), a narceja-galega (Lymnocryptes minimus), a garça-branca-pequena (Egretta garzetta) e o corvo-marinho-de-faces-brancas (Phalacrocorax carbo) entre muitas outras. Mais para o interior do país, em Montalegre, o centro histórico é local de nidificação habitual de rabirruivos-pretos (Phoenicurus ochruros), andorinhões-pretos (Apus apus), e até de chascos-cinzentos (Oenanthe oenanthe), ariscos visitantes estivais dificilmente observáveis noutra área urbana do país que não nesta vila raiana de Trás-os-Montes. Em pleno centro da cidade do Porto, no Parque da Cidade, entre andorinhas-das-barreiras (Riparia riparia), cartaxos (Saxicola torquata), galeirões (Fulica atra), galinhas-de-água (Gallinula chloropus), guinchos (Larus ridibundus), garças-cinzentas (Ardea cinerea) e até guarda-rios (Alcedo atthis), a lista de espécies observadas ao longo do ano é tão extensa e rica que o Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens (FAPAS), já demonstrou, inclusive, a intenção de elaborar um guia de aves do Parque da Cidade que permita aos visitantes identificar e conhecer a riqueza avifaunística deste pulmão verde da cidade. No entanto, a ideia não é nova na Invicta. Em 1993, a Fundação de Serralves, localizada nas imediações da Avenida da Boavista, lançou o livro Aves de Serralves, onde são descritas as 79 espécies de aves com que os visitantes dos jardins da Fundação se podem deparar habitualmente. Entre estas, destaque para espécies vistosas como a poupa (Upupa epops), o gaio (Garrulus glandarius) e a pega-rabuda (Pica pica), e ainda para dois residentes inusitados: a coruja-das-torres (Tyto alba) e o mocho-galego (Athene noctua), duas rapinas nocturnas relativamente comuns nesta parte da cidade, embora mais frequentemente escutadas do que observadas pelos habitantes humanos.
Na região centro, próximo da cidade de Coimbra, a Mata Nacional do Choupal é local de nidificação de vários casais de milhafre-preto (Milvus migrans), uma rapina que se tornou tão comum na região, que os habitantes da cidade já se habituaram a vislumbrar as suas silhuetas planando lentamente sobre a baixa da cidade, sobre a auto-estrada A1 ou sobre as margens urbanizadas do Mondego, em busca de presas.
No centro-sul do país, em grandes cidades como Castelo Branco, Portalegre e Beja, ou em pequenas vilas como Figueira de Castelo Rodrigo, Barrancos, Alcácer do Sal, ou Mértola, as cegonhas-brancas (Ciconia ciconia) também se tornaram, nas últimas décadas, inquilinas notadas e incontornáveis, construindo os seus enormes ninhos sobre campanários, torres e chaminés, com o mesmo à vontade com que exibem as suas ruidosas paradas nupciais. Mas em Mértola, não são apenas as cegonhas que pontuam os céus da vila. Durante a Primavera e o Verão, um pequeno e raro falcão migrador que nidifica no sul do Mediterrâneo e inverna em África, regressa a esta pequena povoação para criar a sua prole. Trata-se do francelho-das-torres (Falco naumanni), uma ave de rapina que nidifica em velhos edifícios, montes abandonados e muralhas. No passado, terá sido bastante abundante pelas vilas e cidades do sul de Portugal, como Évora ou Castro Marim, mas actualmente, a população está estimada em apenas cerca de 160 casais repartidos por 10 colónias de criação, sendo uma das mais importantes, aquela que cria na igreja matriz, no castelo e nos velhos edifícios de Mértola, com cerca de 60 casais recenseados.
A maioria das pessoas reconhece certamente as aves como vizinhos rotineiros no habitual frenesim citadino. Mas quantos de nós terão alguma vez atentado nas diversas espécies de répteis e até anfíbios que povoam as nossas cidades? Na cidade de Lisboa, por exemplo, os muros, os jardins e até os interiores das casas abandonadas ou arruinadas dos bairros históricos, constituem um lar excelso para a cobra-de-ferradura (Coluber hippocrepis), uma serpente não venenosa e inofensiva para o ser humano, com excepcionais qualidades trepadoras, que se alimenta dos abundantes ratos e ratazanas que infestam esta área da cidade, embora também cace outros répteis, como a osga-comum (Tarentola mauritanica) e a lagartixa-ibérica (Psammodromus hispanicus), também eles habitantes muitas vezes inauditos destes «condomínios de luxo» que são os velhos bairros do centro histórico da capital. Na cidade de Évora, um outro réptil, a osga-turca (Hemidactylus turcicus), uma espécie de pequenas dimensões, bastante rara entre nós e de distribuição localizada, também coexiste, muitas vezes incógnito, com os seres humanos. De actividade exclusivamente nocturna, é surpreendentemente frequente na cidade, sobretudo em ruas pouco movimentadas, num claro contraste com o que se verifica fora do espaço urbano eborense, onde é bastante rara. Mais a sul, no Algarve, também os inofensivos camaleões (Chamaeleo chamaeleon) vivem lado a lado com os milhares de veraneantes que anualmente invadem o litoral algarvio. Embora mais comuns nos pinhais litorais, sobretudo na região do centro e sotavento algarvio, os camaleões ocorrem também em zonas com árvores de fruto e vinhas, em áreas semiurbanas, paredes-meias com o casario das cidades de Faro, Tavira e Vila Real de Santo António.
Menos ubíquos do que os répteis, dada a sua menor tolerância à poluição e dependência relativamente à água para completar o ciclo biológico, os anfíbios também são presença habitual em algumas das nossas vilas e cidades. No norte e centro do país, algumas cidades costeiras, como Esposende, Vila do Conde, Póvoa do Varzim e Figueira da Foz, albergam nas suas frentes ribeirinhas dunares populações de sapo-de-unha-negra (Pelobates cultripes), uma espécie de anfíbio de hábitos nocturnos que apenas se observa com alguma facilidade nas noites suaves e chuvosas quando emerge da areia. Na cidade do Porto, o Parque da Cidade e o Jardim Botânico, são igualmente refúgio de várias espécies de anfíbios, entre os quais o sapo-comum (Bufo bufo), a rã-verde (Rana perezi), a salamandra-de-pintas-amarelas (Salamandra salamandra) e até o sapo-parteiro-comum (Alytes obstetricans), um pequeno anfíbio assim apelidado pelo facto do macho desta espécie transportar «às costas» a postura de ovos da fêmea, praticamente até à sua eclosão.
À noite, quando os habitantes humanos se recolhem nas suas casas, a escuridão traz às ruas, aos becos, aos jardins e até às nossas próprias casas os mais esquivos e furtivos habitantes da «fauna urbana»: os mamíferos. Apesar do reduzido número de espécies de mamíferos que colonizou os ambientes urbanos portugueses, as que o conseguiram, exploraram este novo habitat como nenhum outro grupo de animais. É o caso de algumas espécies de pequenos roedores, como o rato-caseiro (Mus musculus), mas sobretudo a ratazana-castanha (Rattus norvegicus), cuja população na área da grande Lisboa, se calcula em cerca de 4,5 milhões de animais, praticamente o equivalente ao dobro da população humana residente! Mas os «mamíferos urbanos» não se resumem a estas espécies «oportunistas». Grandes cidades como Lisboa, Porto, Braga, Coimbra, Setúbal ou Faro, possuem, apesar da contínua expansão do betão, inúmeras áreas cultivadas espalhadas um pouco por todo o seu espaço urbano: são as hortas. Embora não passem de pequenos espaços de terra agricultada, para algumas espécies de mamíferos insectívoros, como a toupeira (Talpa caeca), o musaranho-de-dentes-brancos-grande (Crocidura russula) e até o ouriço-cacheiro (Erinaceus europaeus), constituem verdadeiros édenes onde a abundância de alimento e de esconderijos, permite uma sobrevivência citadina relativamente desafogada e sossegada. Menos comum, mas nem por isso menos familiarizado com os jardins e parques de algumas das nossas cidades, é o esquilo (Sciurus vulgaris). Até há alguns anos atrás, pelo facto da espécie se encontrar extinta em Portugal desde o século XVI, as únicas populações urbanas de esquilos resumiam-se aos animais introduzidos no Parque Ecológico de Monsanto, em Lisboa, e no Jardim Botânico de Coimbra. Actualmente, graças a uma recolonização natural a partir da Galiza, o esquilo regressa lentamente à convivência dos habitantes de algumas cidades, sobretudo do norte e centro do país (Caminha, Amarante, Penafiel, Valongo, Vila Nova de Gaia, Lamego, etc.), onde a abundância de áreas florestadas se revela ideal para a instalação deste sociável animal arborícola. Porém, alguns dos nossos vizinhos mamíferos, como os morcegos, não gozam de tão boa reputação. No entanto, sob as telhas, por detrás de uma portada, numa cave escura e pouco utilizada, ou simplesmente no buraco de uma árvore, os morcegos vivem mais perto de nós do que suspeitamos e ocorrem em praticamente todas as cidades portuguesas. O morcego-anão (Pipistrellus pipistrellus) é claramente a espécies de morcego mais comum nas nossas cidades, embora o morcego-hortelão (Eptesicus serotinus), o morcego-rabudo (Tadarida teniotis) e o morcego-arborícola (Nyctalus noctula) também sejam espécies que frequentam as nossas áreas urbanas. Apesar de pouco estimados pelos seres humanos, estes pequenos mamíferos alados desempenham um importante papel ecológico nas nossas cidades, já que se alimentam quase exclusivamente de pequenos insectos, muitos dos quais são incómodos e prejudiciais para os seres humanos. Se nos lembrarmos que um morcego consome, numa única noite, o equivalente ao seu peso em insectos, facilmente poderemos depreender que sem estes eficazes caçadores nocturnos, as nossas vilas e cidades, por certo que seriam espaços bem menos habitáveis para os seres humanos.
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