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quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Notícia - Vampiros – os mitos e a história real

Quem não ouviu já falar de vampiros, criaturas que buscam o sangue das suas presas na noite? Contudo, nem tudo o que se diz corresponde à verdade e muitos são os factos deturpados pela associação destes mamíferos a criaturas míticas milenares.

Os vampiros são morcegos, cuja imagem está impregnada de informações distorcidas por séculos de ignorância, mitos e superstição. O enraizamento cultural destes conhecimentos condiciona os esforços empreendidos no sentido de clarificar o papel destes animais nos ecossistemas e de contrariar o declínio de outras espécies de morcegos que acabam por ser afectadas. A maior parte das pessoas desconhece que apenas três das cerca de mil espécies de morcegos que existem actualmente alimentam-se de sangue, encontrando-se restringidas às regiões tropicais da América Latina, desde o seu aparecimento, há cerca de sete milhões de anos.

Os mitos com vampiros remontam há milhares de anos. Os mais antigos provêem da Europa, mas estudos etnológicos revelam que praticamente nenhuma cultura está isenta de conter no seu espólio criaturas medonhas sugadoras de sangue, às quais se associou a imagem dos morcegos. Estas criaturas míticas foram responsabilizadas, ao longo dos tempos, por mortes pouco claras e por devastadoras epidemias, como a peste negra e a varíola. Mas este folclore que liga os morcegos aos vampiros é particularmente intrigante, na medida em que os mitos surgiram em locais onde estas espécies de morcegos nunca existiram. Apesar de se assumir que esta associação remonta às tradições antigas, a história indica que ela é uma invenção humana recente.

Os europeus desconheceram a existência destes animais até ao século XVI, altura em que os exploradores espanhóis regressaram das Índias com a primeira descrição de seres que se alimentavam de sangue e que mordiam as pessoas durante a noite, comportamento que associaram ao das criaturas das fábulas a que chamavam vampiros. Mas esta designação de origem eslava, que significa “bêbado de sangue”, não foi prontamente atribuída aos morcegos vampiros e só no final do século XIX as três espécies foram descritas para a Ciência. Contudo, esta associação só foi completada em 1897, quando Bram Stocker publicou “O Drácula”, uma obra onde os vampiros se transformavam em morcegos, conjugando a mitologia europeia com uma personagem histórica real – Vlad Tepes – um príncipe da Valáquia (actual Roménia), com fama de sanguinário, que viveu entre 1430 e 1476. Não existem evidências que este príncipe tivesse o hábito de beber o sangue das vítimas, mas sabem-se duas coisas – que no castelo de Vlad Tepes não existiam vampiros e que estes mamíferos não são a fonte dos mitos de vampiros do Velho Mundo.

Mas vamos conhecer um pouco melhor estes animais. A forma como os vampiros evoluíram permanece um mistério. Os registos fósseis mostram que há muitos milhares de anos eles habitavam as florestas tropicais, onde se alimentavam essencialmente de aves e pequenos mamíferos. A chegada dos colonizadores europeus ao continente americano, e especialmente do gado que com eles trouxeram, providenciou aos vampiros uma nova e praticamente ilimitada fonte de alimento, permitindo que as suas populações crescessem exponencialmente. A sem precedente desflorestação da América Latina, na tentativa de aumentar a área para explorações de gado, permitiu que esta tendência se intensificasse, até ao ponto dos vampiros se tornarem numa séria praga agrícola em muitas áreas. Todavia, em nichos não perturbados de floresta, eles vivem actualmente como os seus antepassados – em reduzidos grupos, alimentando-se do sangue de pequenos animais.

Das três espécies de morcegos vampiros que existem actualmente, apenas uma (a mais comum - Desmodus rotundus) preda exclusivamente mamíferos. As outras duas – Diaemus youngi e Diphylla ecaudata – alimentam-se de diversos vertebrados, preferencialmente aves. Ao contrário do que a indústria cinematográfica nos levou a acreditar, os vampiros são animais muito pequenos e leves. Vivem em grutas, minas, buracos de árvores e em edifícios abandonados, em colónias com cerca de 100 animais, mas que podem chegar aos 2000 indivíduos.

São voadores rasos e fazem manobras espantosas, devido às suas longas e estreitas membranas alares. Contrariamente aos outros morcegos, os vampiros são grandes adeptos da locomoção no solo, sendo capazes de correr com grande velocidade e dar grandes saltos, assumindo uma postura bípede. Eles procuram as suas vítimas durante a noite, podendo voar mais de 10 km nas suas buscas. Exactamente como localizam e seleccionam presas individuais é desconhecido, mas certamente diversos factores estão envolvidos, nomeadamente a sua excepcional visão. Adicionalmente, as fossas nasais sensíveis ao calor permitem-lhes detectar as presas através da radiação infravermelha por elas emitida e escolher as áreas do corpo com melhor irrigação superficial e, por isso, mais “apetitosas”.

A especialização alimentar condicionou a anatomia e fisiologia dos vampiros. Eles possuem um estômago fino, capaz de se distender e um intestino rodeado de grandes capilares que aumentam a taxa de absorção. Mas a adaptação mais espantosa prende-se com a composição da saliva, constituída por três ingredientes activos, que mantêm o sangue fluído - um anticoagulante, uma substância química que previne a aglutinação dos glóbulos vermelhos e uma última que inibe a constrição dos vasos sanguíneos sob a ferida. A mordedura é rápida, de modo a não alertar as presas, e o sangue é lambido (e não sugado) através de movimentos rápidos e contínuos da língua, durante cerca de 30 minutos. Durante este período, os morcegos ingerem o equivalente a duas colheres de sopa de sangue. Porque o sangue tem cerca de 80% de água, à medida que se alimentam os vampiros urinam, removendo o excesso deste líquido.

Vivem numa cultura fortemente social, onde o reconhecimento individual é muito importante. Uma vez que não podem sobreviver mais de dois dias sem uma refeição, estes laços são fundamentais para lhes garantir a sobrevivência, pois um vampiro pode alimentar outro com regurgitações de sangue, quando solicitado. Este comportamento é bastante vantajoso em termos adaptativos, tal como acontece com a sua capacidade de adoptar crias órfãs. É um altruísmo recíproco, muito raro entre os mamíferos, conhecido apenas nos cães selvagens, nas hienas, nos chimpanzés e nos humanos.

Os hábitos alimentares dos vampiros, que à primeira vista nos parecem repulsivos, podem de facto resolver ou atenuar alguns dos nossos problemas. Descobertas recentes acerca das propriedades anticoagulantes da saliva dos vampiros demonstram que esta possui um ingrediente vinte vezes mais poderoso que qualquer anticoagulante actualmente conhecido, o que promete o desenvolvimento de novos medicamentos de prevenção e combate de doenças cardiovasculares.

Mas apesar de serem animais verdadeiramente fascinantes, os vampiros podem criar alguns problemas, nomeadamente quando existem em grandes densidades junto de pessoas e animais domésticos. Mordeduras ocasionais raramente prejudicam as vítimas, mas mordeduras repetidas, especialmente em animais jovens, podem enfraquecê-los, enquanto as feridas podem tornar-se focos de infecção. Para além deste aspecto, tal como outros animais, é possível que os vampiros contraiam raiva. Apesar da maior parte dos morcegos infectados acabar por morrer da doença, alguns poderão sobreviver o tempo suficiente para infectar as suas presas. Em muitas regiões da América Latina as perdas económicas dos agricultores provocadas, anualmente, por surtos desta doença nos bovinos, são imputadas aos ataques dos vampiros.

Quando os vampiros não encontram o seu alimento de eleição, podem utilizar presas alternativas, como os humanos, embora isto só aconteça a pessoas que dormem ao relento. Estes episódios, embora esporádicos, e na maior parte das vezes sem consequências, são suficientes para criar um clima de histeria colectiva, despoletando verdadeiras “caças aos vampiros”, que acabam por atingir todos os morcegos da área. Ao longo das últimas três ou quatro décadas, foram iniciados na América Latina programas de controlo de vampiros. Infelizmente, os resultados resumem-se à perda incalculável de insectos altamente benéficos para a agricultura, devido à utilização de venenos, e de morcegos inofensivos, que se alimentam de frutos e néctar, muitos dos quais já se encontram em perigo de extinção.

Será apenas através de programas educativos que a atitude pública perante os morcegos poderá ser alterada. Quanto aos conflitos entre o ser humano e os vampiros, para além de acções educativas, restam-nos campanhas de controlo bem planeadas. No entanto é importante lembrar que o actual comportamento alimentar dos vampiros é apenas uma adaptação às alterações dos seus habitat provocadas pelo Homem.

Maria Carlos Reis

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