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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Gramíneas

Grama. Capim. Relva. Esta é a forma com que normalmente nos referimos a este grupo de plantas tão particulares, mas quantas vezes nos lembrámos de atentar um pouco mais nelas, compreendê-las e dignificá-las? Provavelmente nenhuma.

As gramíneas são uma vasta família de angiospérmicas (plantas com flor), tecnicamente designada Poaceae (ou Gramineae), de distribuição cosmopolita. A diversidade de espécies que pertencem a este grupo é enorme, cerca de 10000 espécies distribuindo-se por cerca de 650 géneros, apenas superada pelas orquídeas (Orchidaceae) e as compostas (Asteraceae), no universo do reino vegetal.

É uma família extremamente versátil pois, através desta miríade de espécies que contém, e não fugindo muito a uma morfologia padrão, conseguiu ocupar quase todos os tipos de habitat disponíveis, em todos os climas. Pertencem a esta família desde plantas muito pequenas, como a vulgar Poa annua que surge entre as pedras da calçada até aos bambus que podem exceder 30 metros de altura. Podem ser desde aquáticas, inclusivamente, de águas salgadas, até formar florestas ou viver nas fendas das rochas mais secas e desertos.

No entanto, no nosso país, as gramíneas nativas (a enorme cana, Arundo donnax, é uma espécie cultivada que se assilvestrou tornando-se invasora) são bastante mais modestas, só por excepção tomando grandes dimensões como é o caso do caniço (Phragmites australis), que pode atingir quatro metros de altura e que habita lugares pantanosos por todo o país.

Uma grande parte das gramíneas que se observam em Portugal optou por ser anual, em resposta ao clima mediterrânico que caracteriza boa parte do país, e, de certo modo consequentemente, de pequenas dimensões. A implementação desta estratégia, que aparece em muitas famílias de plantas no nosso país, permite a estas ocupar quer sítios muito secos no Verão, quer terrenos cultivados ou de qualquer outro modo frequentemente perturbados, como é grande parte do nosso território. As gramíneas anuais sobrevivem sem nenhum esforço especializado no sentido de resistir à secura porque se limitam a passar o Verão na forma de semente. Uma estratégia tão simples e de baixo custo como esta, e ainda assim, tão frutífera, facilmente se tornou “popular”, pelo que inúmeras espécies de gramíneas a usam. Podemos citar como exemplo as gramíneas das pastagens secas do sul do país – géneros Briza, Vulpia, Bromus, Stipa, Hordeum, Brachypodium, Taeniatherum, Gastridium, Aegilops, entre outros.

Porém, há uma considerável diversidade de gramíneas perenes, que é sobretudo notável em habitats menos hostis, onde a humidade mais duradoura o permite. Em zonas pantanosas, o caniço é uma delas, mas também plantas dos géneros Cynodon, Holcus, Agrostis, Panicum, Molinia, Paspalum, que formam relvados especialmente verdes e densos no Verão em zonas húmidas; e a morraça (Spartina) nos habitats húmidos com influência marinha. Nos pinhais arenosos, nas zonas mais frias no inverno, pode geralmente ser encontrada Stipa gigantea, uma gramínea que no Verão adorna o campo com as suas grandes inflorescências douradas.

Algumas espécies são muito frequentes mesmo em habitat citadino. É o caso de Piptatherum miliaceum, uma gramínea perene com a forma de uma graciosa cana, Hordeum murinum, as vulgares “espigas” das brincadeiras de infância e Poa annua, habitante frequente dos interstícios entre as pedras da calçada.

Mas afinal, o que são as gramíneas?
A morfologia típica de uma gramínea é muito semelhante em todas as espécies: um caule geralmente oco, com nós engrossados, no qual se inserem as folhas com uma forma tendencialmente linear, e de nervação paralela (em todas as espécies portuguesas). Estas folhas têm uma morfologia muito típica: a parte proximal forma uma bainha que envolve parte do caule, a qual termina no limbo foliar. Na articulação entre estas duas partes existe um prolongamento – a lígula – em forma de membrana ou de uma fiada de pêlos.

Porém, a característica mais marcante desta família reside na morfologia da flor. Esta é um exemplo de redução floral fantástico. Entenda-se por “redução”, o processo evolutivo que conduz à perda de estruturas que, outrora funcionais, terão perdido a sua função e, como tal, razão de existir.

A sua aparente simplicidade estrutural fez com que se tenham considerado as gramíneas como plantas primitivas. Essa ideia está, contudo, ultrapassada.

O diagrama resume de uma forma simplificada uma espigueta – a unidade básica da inflorescência de uma gramínea e com muita importância na identificação das espécies.

As flores das gramíneas, como já referido, são especiais. Não existem pétalas nem sépalas como estamos habituados, já que estas plantas não precisam delas para atracção de insectos: a polinização é feita pelo vento (polinização anemófila). Tudo o que resta destas peças florais, que terão existido num passado distante, resume-se a duas minúsculas escamas – as lodículas – que ajudam na abertura da flor (afastamento da lema e da pálea), expondo assim os órgãos reprodutores. Todas as outras peças – lema, pálea e glumas – são brácteas, isto é, folhas modificadas que, para além de servirem para a protecção das flores como geralmente acontece, aqui têm também uma função bastante importante na dispersão da semente. Esta função é complementada pela presença, em muitos géneros, da arista – um prolongamento rígido da lema (ou das glumas) provido de diminutos “ganchos” que se ancoram em qualquer superfície minimamente rugosa ou pilosa.

Quando a flor está aberta (na ântese), e dado que as pétalas estão ausentes, observam-se apenas os estames muito protuberantes e pendentes, libertando quantidades copiosas de pólen, e os estigmas densamente plumosos, também protuberantes. Esta morfologia e comportamento dos órgãos reprodutores, que maximiza a dispersão e captura do pólen, é típica de plantas polinizadas pelo vento, e diferentes variantes são usadas por outras famílias nada aparentadas, como as Fagaceae (carvalhos), Salicaceae (salgueiros, choupos) e Plantaginaceae (tanchagens) – um dos inúmeros casos de evolução convergente.

E o que não são as gramíneas?
A nível mundial existem diversas famílias evolutivamente próximas das gramíneas, incluídas na ordem Poales. Embora algumas sejam de facto muito semelhantes, em Portugal não há motivos para muita dúvida, pois apenas existem quatro destas famílias – Sparganiaceae, Typhaceae, Juncaceae e Cyperaceae – as quais são suficientemente diferentes para não causar confusão após uma observação cuidada da sua estrutura. As duas primeiras famílias constituem plantas de locais pantanosos, morfologicamente bem distintas das gramíneas.

As Juncaceae, pelo contrário, podem já ter semelhanças apreciáveis. Esta família compreende os juncos (Juncus spp.) mas também um género menos conhecido, Luzula, de aspecto graminóide. A principal diferença desta família reside nos caracteres florais – as flores, aqui, não estão organizadas em espiguetas e apresentam três pétalas e três sépalas, ao contrário das gramíneas, muito embora estas peças sejam pequenas e verdes. Além disto, nos juncos as folhas são cilíndricas e não planas (ainda que por vezes enroladas) como nas gramíneas.

As Cyperaceae são tecnicamente mais difíceis de distinguir das gramíneas – a diferença mais importante é apenas o número de brácteas associadas a cada flor. Nas gramíneas, como já foi visto, existem duas – a lema e a pálea. Nas Cyperaceae, apenas uma. Esta diferença, contudo, nem sempre é fácil de observar. Outras diferenças podem ser enumeradas, mas não podem ser generalizadas a todas as Cyperaceae, pelo que, se ausentes, nos deixam na dúvida. Seja como for, a título de exemplo, podemos dizer que as Cyperaceae habitam quase sempre zonas húmidas, apresentam frequentemente caules triangulares, podem não ter folhas e não apresentam a organização típica de espigueta.

Como identificar uma gramínea?
A identificação, ou determinação, de exemplares de gramíneas pode parecer à primeira vista difícil, mas a verdade é que se revela bastante mais expedita para a maioria das espécies do que muitas outras plantas aparentemente simples. Uma grande vantagem é que quase somente através dos caracteres da espigueta e da inflorescência se pode chegar à espécie, o que não surpreende, visto que a parte vegetativa destas plantas é muito idêntica em todas as espécies. A desvantagem é a dimensão reduzida de muitas das flores, que torna a identificação de certas espécies, como por exemplo, Agrostis tenerrima, um verdadeiro trabalho de ourives!

Alguns caracteres importantíssimos a ter em atenção são a dimensão e número de flores da espigueta, a eventual presença de dois tipos de espiguetas diferentes, a presença e o tipo de arista, o arranjo das várias espiguetas no conjunto da inflorescência e o tipo de inflorescência. A título de exemplo, uma gramínea cujas espiguetas são grandes, têm somente uma flor, com arista retorcida, e estão dispostas em “cacho” (panícula) pertence ao género Stipa, sem necessidade de olhar a outros caracteres.

Sua expressão nos ecossistemas.
Alguns ecossistemas são estruturados por gramíneas, como é o caso das estepes. Em Portugal não existem verdadeiras estepes, contudo, as gramíneas são importantes constituintes de diversos habitats, principalmente aqueles que se desenvolvem em locais soalheiros e abertos.
Nos prados calcários que ocupam algumas zonas do país, nomeadamente na região de Lisboa, domina uma gramínea – é Brachypodium phoenicoides, uma planta perene que forma densos tufos que por vezes coalescem num relvado contínuo. Estes prados são habitats riquíssimos do ponto de vista florístico e devem a sua estrutura sobretudo a esta planta, e, possivelmente, devem-lhe até a sua perenização pelo atractivo que B. phoenicoides representa para os herbívoros.

Um caso totalmente diferente é o que sucede nas dunas. Estas formações estão dependentes de duas espécies de gramíneas perenes que nelas se desenvolvem – Ammophila arenaria (estorno) e Elymus farctus. Ambas são imprescindíveis na fixação da areia trazida pelo vento da praia, e, se ausentes, a duna primária (aquela mais próxima do mar) colapsa, o que, ao longo do tempo, pode resultar na degradação de todo o complexo dunar, pois não existe outra espécie que substitua a A. arenaria nem o E. farctus nesta tarefa.

Como terceiro exemplo, refira-se de novo os caniçais. Este é um caso extremo em que o habitat é formado por uma única espécie, uma gramínea (Phragmites australis), sendo um habitat de inegável valor para a avifauna.

Espécies raras.
Embora seja uma ideia estranha para quem nunca pensou no assunto, existem diversas espécies de gramíneas bastante raras, algumas endémicas.
O género Festuca é especialmente propício à raridade. Compreende muitas espécies, todas perenes, habitando diversos habitats. Este género, por alguma razão desconhecida, possui muitas espécies que se restringiram muito no espaço geográfico que ocupam. Destacam-se aqui a Festuca henriquesii e a F. brigantina. Ambas são endémicas de locais muito restritos, a primeira da Serra da Estrela, a segunda de uma formação geológica muito especial existente em Trás-os-Montes, as serpentinas. Ambas estão em perigo de desaparecer, sobretudo F. brigantina, cujo principal factor de ameaça é a destruição do seu habitat pela urbanização, dado que alguns núcleos estão perigosamente perto da cidade de Bragança.

Pseudarrhenaterum pallens é uma outra espécie raríssima. Endémica de Portugal, surge apenas em algumas, poucas, zonas calcárias, principalmente na Serra da Arrábida, onde se encontra também ameaçada pelas actividades humanas. É uma planta perene de matos abertos e fendas de rochas, mas sempre escasseando.

Para finalizar, refira-se Avenula hackelii, endémica da costa sudoeste, onde ocorre em substratos arenosos em populações fragmentadas. Embora ainda não esteja propriamente em vias de se extinguir, encontra-se sob a ameaça severa de pressões urbanísticas e em nítida regressão.

Várias outras gramíneas são muito raras; aqui mencionaram-se apenas algumas das endémicas e em risco. Porém, outras há que, não sendo endémicas, são de ocorrência muito pontual no território nacional. Entre elas refere-se aqui Stipa offneri, um exemplo típico pois apesar de ter uma distribuição generalizada no oeste do Mediterrâneo, o seu habitat preferencial é restrito, limitando-se a fendas de rochas calcárias, por vezes em montanha, e ocorrendo, em Portugal, apenas num local – algumas encostas marítimas da Serra da Arrábida.

Obviamente que todos estes nomes não dizem nada. Por isso convido o leitor a dar um passeio pelo campo, em fins de Maio, talvez munido de uma lupa de bolso, para observar a diversidade de plantas que há neste grupo; reparar no quão diferentes, afinal, elas são, quando olhamos atentamente e quiçá aperceber-se dos pequenos indícios ecológicos que se escondem por detrás da distribuição espacial de cada espécie. Para quem aceita o desafio de identificar uma gramínea (e porque não?), aconselho a consulta de Romero Zarco (1990).

Miguel Porto

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