A respiração, a irrigação do cérebro e o sistema imunitário dependem do elo que une a cabeça ao resto do corpo. Descubra os segredos do pescoço e os motivos por que devemos mimá-lo.
Spencer Trapp é um tipo com sorte. Partiu, literalmente, o pescoço num desafio de futebol americano, mas continuou a jogar como se nada tivesse acontecido. Foi no dia 19 de Setembro de 2008, durante um jogo de uma liga estudantil do Nebraska. “Senti que o tinha torcido, mas pensei que era um esticão sem importância”, explicou. “Ninguém sai por uma lesão assim.” Após o intervalo, voltou ao campo e chegou a participar num par de jogadas. Nessa noite, as dores agravaram-se. Os exames confirmaram que tinha fracturado a quinta vértebra. Trapp foi operado de urgência. Passado um ano, tinha recuperado o suficiente para praticar de novo o seu desporto preferido. O caso deste jovem de 18 anos chamou a atenção dos media pelo seu carácter excepcional: uma agressão de semelhante calibre à complexa estrutura que une a cabeça ao tórax só pode conduzir à morte ou à paralisia total.
Esse elo anatómico dos vertebrados surgiu pela primeira vez nos animais que abandonaram as águas para colonizar terra firme, durante o Devónico. O primeiro ser com pescoço de que se tem conhecimento é o Tiktaalik roseae, um peixe pulmonado (criatura de transição entre as vidas aquática e terrestre) que viveu há cerca de 375 milhões de anos. Não só trocou as barbatanas por patas como dispunha, igualmente, de um crânio, costelas e apêndices semelhantes aos dos primeiros tetrápodes (vertebrados de quatro patas).
A inovação desenvolvida pelo Tiktaalik ro seae teve abundante descendência mas, no caso dos actuais mamíferos, mantém-se sempre subordinada às mesmas linhas-mestras: tanto a girafa como o rato ou a baleia possuem uma coluna cervical (a coluna vertebral que corresponde ao pescoço) de sete vértebras. De menor tamanho no ser humano, a sua função é alojar e proteger a medula espinal, suster o crânio e permitir à cabeça efectuar diversos movimentos. São designadas por C1, C2... até C7, embora as duas cervicais superiores tenham também direito a um nome próprio mais sugestivo do que a fria nomenclatura anatómica. Assim, a primeira chama-se “atlas”, em honra do titã da mitologia grega que suportava o peso do mundo nos ombros. Trata-se de uma peça óssea incompleta, que se articula na face superior com o osso occipital do crânio e, na face inferior, com a C2, mais conhecida pela designação de “áxis” (eixo).
Tal como uma bola num espaço vazio, as vértebras atlas e áxis especializaram-se de forma a dotar a cabeça de uma mobilidade muito mais ampla do que conseguiria com vértebras normais, pois permitem a inclinação lateral e a rotação, flexão e extensão, isto é, a deslocação do queixo em direcção ao tórax e vice-versa. Um sistema de ligamentos, tendões e músculos contribui para estabilizar a coluna cervical, enquanto os discos intervertebrais protegem as sete peças ósseas da fricção e de eventuais choques.
Trabalho de canalização
O intricado trabalho de canalização exibi do nesta delicada zona de transição do or ga nis mo não lhe fica atrás. Certos orifícios per mi tem a pas sagem das artérias vertebrais, en car re ga das de transportar o sangue até ao cé rebro, cujos tecidos consomem 20 por cento da energia total do organismo. Outras duas artérias, as carótidas, sobem de ambos os lados e cada uma bifurca-se em duas, a externa e a interna. As primeiras irrigam a maior parte do rosto, as meninges e o próprio pescoço, enquanto as internas se juntam às artérias vertebrais para alimentar o cérebro e o globo ocular, formando um dispositivo que assegura o fluxo sanguíneo do sistema nervoso central. Por fim, as duas veias jugulares transportam o sangue pobre em oxigénio da cabeça para o coração. Não é de estranhar, por conseguinte, que uma lesão vertebral possa provocar graves problemas circulatórios, ou mesmo tornar-se fatal.
Associado aos vasos sanguíneos, torna-se também indispensável destacar um dos principais componentes do nosso sistema imunológico: o linfático, a rede de órgãos, gânglios, canais e vasos que produzem e transportam linfa dos tecidos para a corrente sanguínea. De facto, o pescoço é a região do corpo com maior densidade de gânglios linfáticos, uma espécie de filtros protectores do nosso organismo. Funcionam do seguinte modo: quando temos, por exemplo, uma infecção na garganta, os glóbulos brancos transportam o agressor (vírus, bactérias...), através dos vasos linfáticos, até aos gânglios mais próximos, onde se procede à sua destruição. No ardor da batalha, uma inflamação pode torná-los palpáveis: é a adenopatia ou linfadenopatia.
Outra glândula sobejamente conhecida que fica alojada no pescoço é a tiróide. Situada imediatamente abaixo da laringe e da maçã de Adão, é formada por dois lóbulos em forma de borboleta ligados por um istmo. Controlada pela hipófise cerebral, produz tiroxina (T4) e triiodotironina (T3), duas hormonas ricas em iodo que regulam o metabolismo basal (o consumo energético do organismo), permitem que os tecidos se desenvolvam nas formas e proporções adequadas e agem sobre os estados de alerta físico e mental. A tiróide também segrega calcitonina, uma hormona que reduz os níveis de cálcio no sangue e inibe a sua re ab sorção óssea.
Um sem-fim de funções vitais
Surpreendentemente, ainda cabem neste pequeno trecho da arquitectura do corpo três vísceras fundamentais: a faringe, via de passagem partilhada pelo ar e pelos alimentos, a traqueia, um tubo de paredes extremamente resistentes graças aos seus 20 anéis cartilaginosos, e a laringe, uma câmara oca que alberga e amplifica o som das cordas vocais.
Deixámos para o fim a matéria mais sensível que atravessa o interior dos nossos pescoços. Referimo-nos à medula espinal, prolongamento do sistema nervoso central que se inicia na base do crânio e termina nas vértebras lombares, percorrendo o canal raquidiano. Não só envia ao cérebro informação sobre sensações e o movimento como também intervém em processos tão fundamentais como a respiração, o ritmo cardíaco, a transpiração, o controlo dos esfíncteres, a ejaculação...
Quando é seccionada, as consequências são dramáticas. O tipo mais grave é a laceração medular, quando se dá uma ruptura da medula que, se for total, provoca a perda irreparável das funções nervosas abaixo do ponto da lesão. Caso os traumatismos se verifiquem na região cervical da medula, as lesões nos nervos que controlam a respiração podem provocar a morte do paciente e, mesmo que ele sobreviva, pode ser afectado por uma perda da sensibilidade do pescoço para baixo, paralisia dos braços e das pernas (tetraplegia) e possível perda do controlo vesical e intestinal, com a consequente incontinência urinária e fecal.
De acordo com um estudo de Ana Garrett (psicóloga), Fernando Martins (fisiatra) e Zélia Teixeira (psicóloga), publicado na Revista da Faculdade de Ciências da Saúde (2009), “a prevalência de indivíduos com sequelas de lesão medular traumática é desconhecida em Portugal e no mundo”. “A taxa de incidência foi descrita num levantamento epidemiológico, efectuado na região centro de Portugal entre 1989 e 1992, como sendo de 58 novos casos por milhão de habitantes, por ano”, afirmam os especialistas. Outros estudos “apontam o trauma por acidente de viação como a principal causa, sendo o sexo masculino mais atingido, com uma média etária de 33 anos”.
Chicotada cervical e sempre-em-pé
Outro problema frequente (embora menos grave, felizmente) é a chamada “chicotada cervical”, que afecta as partes moles do pescoço, isto é, os músculos, ligamentos, nervos e discos intervertebrais. É produzido por um abanão brusco da cabeça, habitualmente causado por um choque na parte posterior de um veículo. O impacto provoca uma flexão excessiva do pescoço e, de imediato, a força de reacção fá-lo estender-se completamente para trás. Tudo se produz numa fracção de segundo, sem que a musculatura tenha tempo para exercer a sua função amortecedora. É por isso que os automóveis modernos estão equipados com apoios de cabeça, que atenuam a gravidade da lesão. Caso contrário, o condutor ou passageiro poderiam mesmo morrer devido à laceração da nuca.
Por isso, para poder suportar as acelerações a que a cabeça é submetida, certas profissões requerem uma musculatura mais poderosa do que é normal. É o caso dos pilotos de caça e de monolugares da Fórmula 1: há mesmo um vídeo a circular pela internet onde se vê o espanhol Fernando Alonso a partir uma noz colocando-a sobre o ombro e inclinando a cabeça para o lado. Por motivos óbvios, os pugilistas também têm de exercitar de forma especial o pescoço. O de Mike Tyson, por exemplo, tem meio metro de circunferência, quase o mesmo da cintura da modelo britânica Kate Moss.
Porém, para além das situações extremas e dos desportos de elite, o pilar da cabeça não deixa de sofrer com as rotinas do quotidiano. Demasiadas horas diante do computador ou uma postura incorrecta quando se escreve ou dorme podem causar contracturas, sobretudo nos músculos posteriores, o que se pode aliviar com recurso a analgésicos, massagens ou ginástica especial. Devemos seguir, pois, o conselho dado pelo grande médico grego Hipócrates (460–377 a.C.): “Procurai obter conhecimento da coluna, pois é o requisito para curar muitas doenças.”
Montra de poder e beleza
Ao longo da história, homens e mulheres ornamentaram o pescoço para ostentar poder e riqueza, como sinal de identidade ou por uma simples questão de estética. O colar mais antigo do mundo, encontrado numa gruta de Taforalt (Marrocos), tem 83 mil anos e é formado por 14 conchas. Confirma que os indivíduos daquela época já tinham pensamento simbólico e uma organização social complexa.
Muito mais recente é a origem de outro complemento omnipresente: a gravata. Em 1660, Luis XIV reparou nos tecidos coloridos atados ao pescoço pelos militares croatas, recebidos em Paris depois de terem enfrentado os turcos. Agradaram tanto ao Rei-Sol que este criou para o seu regimento um lenço com a insígnia real a que chamou cravatte.
Qualquer que seja o enfeite escolhido, um pescoço longo e delicado foi sempre considerado um símbolo de beleza. Além disso, as terminações nervosas transformam-no numa das zonas mais sensíveis do corpo. Os beijos e carícias nesta região estimulam o desejo sexual. Segundo a Fundação Kinsey, 70 por cento das orientais consideram o pescoço a zona erógena por excelência. No Japão, expor a nuca é equiparável a exibir os seios no Ocidente.
Perder a cabeça
Cortar o pescoço foi sempre uma das formas mais eficazes de pôr termo à vida de um condenado à morte. Na Antiguidade, a decapitação estava reservada aos poderosos, pois considerava-se que implicava menor sofrimento. Os pobres eram enforcados sem qualquer consideração. Henrique VIII mandou decapitar duas das suas mulheres: Ana Bolena e Catarina Howard. Antes de morrer, Ana ainda brincou com o seu carrasco: “Não vos darei muito trabalho; tenho o pescoço fino.”
A fim de evitar as carnificinas, a Revolução Francesa instituiu o uso da guilhotina, cuja lâmina oblíqua permitia, teoricamente, golpes mais rápidos e precisos. Nos anos do Terror (1793/94), podem ter rolado até 40 mil cabeças, incluindo a de Robespierre, principal instigador daquele banho de sangue. Actualmente, a Arábia Saudita mantém a decapitação com espada para condenados por crimes de violação, assassínio, sodomia, bruxaria e tráfico de drogas.
Espanha desenvolveu o seu próprio método de estrangulamento: o garrote. A versão original consistia num colar de ferro que se ia apertando com um parafuso até partir o pescoço e provocar asfixia.
Retirado de:
M.S./I.J.
SUPER 147 - Julho 2010
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