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segunda-feira, 15 de maio de 2017

Notícia - Fertilizações “invitro”: Nova arma da genética promete melhorar taxa de sucesso

A gravidez de uma mulher de 41 anos após um inédito rastreio genético, que aumentou consideravelmente as suas hipóteses de ter um filho, foi hoje recebida com grande entusiasmo nos meios de comunicação britânicos. É mais um avanço da genética ao serviço da reprodução, aplaudido pelos especialistas. Mais do que um bebé, gera-se assim mais uma boa dose de esperança para muitas mulheres.

Chamemos-lhe A. Segundo os relatos divulgados ontem A. tem 41 anos e um pesado historial de insucessos no seu passado reprodutivo. Registam-se dois abortos e 13 ciclos de Fertilização Invitro sem sucesso.

Os especialistas que a receberam na clínica Care Fertility Group, em Nottingham, sabem que a idade da mulher explica muitas interrupções espontâneas de gravidez e que muitas destas, por sua vez, são provocadas por anomalias cromossómicas. Optam assim por rastrear os 23 cromossomas que compõem o glóbulo polar do óvulo (espécie de satélite que fica do lado de fora do óvulo mas integrado nele) antes da fertilização e sabendo que a grande maioria das anomalias cromossómicas têm causa materna. Foram colhidos nove óvulos e apenas dois não apresentavam anomalias. Os dois foram implantados e um desenvolveu-se numa gravidez de sucesso.

Os avanços das técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA) já tinham chegado a este ponto mas nunca com este alcance. A biópsia ao primeiro glóbulo polar é uma técnica de diagnóstico genético pré-implantação usada em certos casos e indicada, por exemplo, para mulheres com mais de 39 anos ou abortos de repetição. No entanto, nestes casos geralmente o rastreio é feito a apenas alguns pares de cromossomas, entre 5 a 12 pares (cada ovócito tem 46 cromossomas, 23 pares), sendo que a verificação de 8 pares será suficiente para cobrir 60 por cento das situações de patologia. O que os especialistas da clínica do Reino Unido fizeram foi um rastreio dos 23 cromossomas do glóbulo polar do óvulo de A., que depois foi fertilizado e implantado com sucesso no útero. Isso nunca terá sido feito antes.

O método poderá aumentar consideravelmente as taxas de sucesso da Fertilização “InVitro” (FIV). Os médicos que reclamam este sucesso falam mesmo na possibilidade de duplicar a taxa de PMA (passando da actual média de 25 por cento para 50 por cento).

O especialista Alberto Barros frisa que não conhece o caso em pormenor e acolhe o avanço com optimismo mas prudência. “É um passo importante, mais uma arma, um instrumento.” Reconhecendo que uma grande percentagem dos abortos acontece devido a anomalias cromossómicas e que a maioria tem causa materna, Alberto Barros nota, no entanto, que este rastreio genético é incompleto pois não abrange o conteúdo cromossómico do homem e não detecta eventuais anomalias no espermatozóide.


http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1357593

sábado, 13 de maio de 2017

Notícia - A vida por um tubo

Para que serve o pescoço?

A respiração, a irrigação do cérebro e o sistema imunitário dependem do elo que une a cabeça ao resto do corpo. Descubra os segredos do pescoço e os motivos por que devemos mimá-lo.

Spencer Trapp é um tipo com sorte. Partiu, literalmente, o pescoço num desafio de futebol americano, mas continuou a jogar como se nada tivesse acontecido. Foi no dia 19 de Setembro de 2008, durante um jogo de uma liga estudantil do Nebraska. “Senti que o tinha torcido, mas pensei que era um esticão sem importância”, explicou. “Ninguém sai por uma lesão assim.” Após o intervalo, voltou ao campo e chegou a participar num par de jogadas. Nessa noite, as dores agravaram-se. Os exames confirmaram que tinha fracturado a quinta vértebra. Trapp foi operado de urgência. Passado um ano, tinha recuperado o suficiente para praticar de novo o seu desporto preferido. O caso deste jovem de 18 anos chamou a atenção dos media pelo seu carácter excepcional: uma agressão de semelhante calibre à complexa estrutura que une a cabeça ao tórax só pode conduzir à morte ou à paralisia total.

Esse elo anatómico dos vertebrados surgiu pela primeira vez nos animais que abandonaram as águas para colonizar terra firme, durante o Devónico. O primeiro ser com pescoço de que se tem conhecimento é o Tiktaalik roseae, um peixe pulmonado (criatura de transição entre as vidas aquática e terrestre) que viveu há cerca de 375 milhões de anos. Não só trocou as barbatanas por patas como dispunha, igualmente, de um crânio, costelas e apêndices semelhantes aos dos primeiros tetrápodes (vertebrados de quatro patas).

A inovação desenvolvida pelo Tiktaalik ro seae teve abundante descendência mas, no caso dos actuais mamíferos, mantém-se sempre subordinada às mesmas linhas-mestras: tanto a girafa como o rato ou a baleia possuem uma coluna cervical (a coluna vertebral que corresponde ao pescoço) de sete vértebras. De menor tamanho no ser humano, a sua função é alojar e proteger a medula espinal, suster o crânio e permitir à cabeça efectuar diversos movimentos. São designadas por C1, C2... até C7, embora as duas cervicais superiores tenham também direito a um nome próprio mais sugestivo do que a fria nomenclatura anatómica. Assim, a primeira chama-se “atlas”, em honra do titã da mitologia grega que suportava o peso do mundo nos ombros. Trata-se de uma peça óssea incompleta, que se articula na face superior com o osso occipital do crânio e, na face inferior, com a C2, mais conhecida pela designação de “áxis” (eixo).

Tal como uma bola num espaço vazio, as vértebras atlas e áxis especializaram-se de forma a dotar a cabeça de uma mobilidade muito mais ampla do que conseguiria com vértebras normais, pois permitem a inclinação lateral e a rotação, flexão e extensão, isto é, a deslocação do queixo em direcção ao tórax e vice-versa. Um sistema de ligamentos, tendões e músculos contribui para estabilizar a coluna cervical, enquanto os discos intervertebrais protegem as sete peças ósseas da fricção e de eventuais choques.

Trabalho de canalização

O intricado trabalho de canalização exibi do nesta delicada zona de transição do or ga nis mo não lhe fica atrás. Certos orifícios per mi tem a pas sagem das artérias vertebrais, en car re ga das de transportar o sangue até ao cé rebro, cujos tecidos consomem 20 por cento da energia total do organismo. Outras duas artérias, as carótidas, sobem de ambos os lados e cada uma bifurca-se em duas, a externa e a interna. As primeiras irrigam a maior parte do rosto, as meninges e o próprio pescoço, enquanto as internas se juntam às artérias vertebrais para alimentar o cérebro e o globo ocular, formando um dispositivo que assegura o fluxo sanguíneo do sistema nervoso central. Por fim, as duas veias jugulares transportam o sangue pobre em oxigénio da cabeça para o coração. Não é de estranhar, por conseguinte, que uma lesão vertebral possa provocar graves problemas circulatórios, ou mesmo tornar-se fatal.

Associado aos vasos sanguíneos, torna-se também indispensável destacar um dos principais componentes do nosso sistema imunológico: o linfático, a rede de órgãos, gânglios, canais e vasos que produzem e transportam linfa dos tecidos para a corrente sanguínea. De facto, o pescoço é a região do corpo com maior densidade de gânglios linfáticos, uma espécie de filtros protectores do nosso organismo. Funcionam do seguinte modo: quando temos, por exemplo, uma infecção na garganta, os glóbulos brancos transportam o agressor (vírus, bactérias...), através dos vasos linfáticos, até aos gânglios mais próximos, onde se procede à sua destruição. No ardor da batalha, uma inflamação pode torná-los palpáveis: é a adenopatia ou linfadenopatia.

Outra glândula sobejamente conhecida que fica alojada no pescoço é a tiróide. Situada imediatamente abaixo da laringe e da maçã de Adão, é formada por dois lóbulos em forma de borboleta ligados por um istmo. Controlada pela hipófise cerebral, produz tiroxina (T4) e triiodotironina (T3), duas hormonas ricas em iodo que regulam o metabolismo basal (o consumo energético do organismo), permitem que os tecidos se desenvolvam nas formas e proporções adequadas e agem sobre os estados de alerta físico e mental. A tiróide também segrega calcitonina, uma hormona que reduz os níveis de cálcio no sangue e inibe a sua re ab sorção óssea.

Um sem-fim de funções vitais

Surpreendentemente, ainda cabem neste pequeno trecho da arquitectura do corpo três vísceras fundamentais: a faringe, via de passagem partilhada pelo ar e pelos alimentos, a traqueia, um tubo de paredes extremamente resistentes graças aos seus 20 anéis cartilaginosos, e a laringe, uma câmara oca que alberga e amplifica o som das cordas vocais.

Deixámos para o fim a matéria mais sensível que atravessa o interior dos nossos pescoços. Referimo-nos à medula espinal, prolongamento do sistema nervoso central que se inicia na base do crânio e termina nas vértebras lombares, percorrendo o canal raquidiano. Não só envia ao cérebro informação sobre sensações e o movimento como também intervém em processos tão fundamentais como a respiração, o ritmo cardíaco, a transpiração, o controlo dos esfíncteres, a ejaculação...

Quando é seccionada, as consequências são dramáticas. O tipo mais grave é a laceração medular, quando se dá uma ruptura da medula que, se for total, provoca a perda irreparável das funções nervosas abaixo do ponto da lesão. Caso os traumatismos se verifiquem na região cervical da medula, as lesões nos nervos que controlam a respiração podem provocar a morte do paciente e, mesmo que ele sobreviva, pode ser afectado por uma perda da sensibilidade do pescoço para baixo, paralisia dos braços e das pernas (tetraplegia) e possível perda do controlo vesical e intestinal, com a consequente incontinência urinária e fecal.

De acordo com um estudo de Ana Garrett (psicóloga), Fernando Martins (fisiatra) e Zélia Teixeira (psicóloga), publicado na Revista da Faculdade de Ciências da Saúde (2009), “a prevalência de indivíduos com sequelas de lesão medular traumática é desconhecida em Portugal e no mundo”. “A taxa de incidência foi descrita num levantamento epidemiológico, efectuado na região centro de Portugal entre 1989 e 1992, como sendo de 58 novos casos por milhão de habitantes, por ano”, afirmam os especialistas. Outros estudos “apontam o trauma por acidente de viação como a principal causa, sendo o sexo masculino mais atingido, com uma média etária de 33 anos”.

Chicotada cervical e sempre-em-pé

Outro problema frequente (embora menos grave, felizmente) é a chamada “chicotada cervical”, que afecta as partes moles do pescoço, isto é, os músculos, ligamentos, nervos e discos intervertebrais. É produzido por um abanão brusco da cabeça, habitualmente causado por um choque na parte posterior de um veículo. O impacto provoca uma flexão excessiva do pescoço e, de imediato, a força de reacção fá-lo estender-se completamente para trás. Tudo se produz numa fracção de segundo, sem que a musculatura tenha tempo para exercer a sua função amortecedora. É por isso que os automóveis modernos estão equipados com apoios de cabeça, que atenuam a gravidade da lesão. Caso contrário, o condutor ou passageiro poderiam mesmo morrer devido à laceração da nuca.

Por isso, para poder suportar as acelerações a que a cabeça é submetida, certas profissões requerem uma musculatura mais poderosa do que é normal. É o caso dos pilotos de caça e de monolugares da Fórmula 1: há mesmo um vídeo a circular pela internet onde se vê o espanhol Fernando Alonso a partir uma noz colocando-a sobre o ombro e inclinando a cabeça para o lado. Por motivos óbvios, os pugilistas também têm de exercitar de forma especial o pescoço. O de Mike Tyson, por exemplo, tem meio metro de circunferência, quase o mesmo da cintura da modelo britânica Kate Moss.

Porém, para além das situações extremas e dos desportos de elite, o pilar da cabeça não deixa de sofrer com as rotinas do quotidiano. Demasiadas horas diante do computador ou uma postura incorrecta quando se escreve ou dorme podem causar contracturas, sobretudo nos músculos posteriores, o que se pode aliviar com recurso a analgésicos, massagens ou ginástica especial. Devemos seguir, pois, o conselho dado pelo grande médico grego Hipócrates (460–377 a.C.): “Procurai obter conhecimento da coluna, pois é o requisito para curar muitas doenças.”

Montra de poder e beleza

Ao longo da história, homens e mulheres ornamentaram o pescoço para ostentar poder e riqueza, como sinal de identidade ou por uma simples questão de estética. O colar mais antigo do mundo, encontrado numa gruta de Taforalt (Marrocos), tem 83 mil anos e é formado por 14 conchas. Confirma que os indivíduos daquela época já tinham pensamento simbólico e uma organização social complexa.

Muito mais recente é a origem de outro complemento omnipresente: a gravata. Em 1660, Luis XIV reparou nos tecidos coloridos atados ao pescoço pelos militares croatas, recebidos em Paris depois de terem enfrentado os turcos. Agradaram tanto ao Rei-Sol que este criou para o seu regimento um lenço com a insígnia real a que chamou cravatte.

Qualquer que seja o enfeite escolhido, um pescoço longo e delicado foi sempre considerado um símbolo de beleza. Além disso, as terminações nervosas transformam-no numa das zonas mais sensíveis do corpo. Os beijos e carícias nesta região estimulam o desejo sexual. Segundo a Fundação Kinsey, 70 por cento das orientais consideram o pescoço a zona erógena por excelência. No Japão, expor a nuca é equiparável a exibir os seios no Ocidente.



Perder a cabeça

Cortar o pescoço foi sempre uma das formas mais eficazes de pôr termo à vida de um condenado à morte. Na Antiguidade, a decapitação estava reservada aos poderosos, pois considerava-se que implicava menor sofrimento. Os pobres eram enforcados sem qualquer consideração. Henrique VIII mandou decapitar duas das suas mulheres: Ana Bolena e Catarina Howard. Antes de morrer, Ana ainda brincou com o seu carrasco: “Não vos darei muito trabalho; tenho o pescoço fino.”

A fim de evitar as carnificinas, a Revolução Francesa instituiu o uso da guilhotina, cuja lâmina oblíqua permitia, teoricamente, golpes mais rápidos e precisos. Nos anos do Terror (1793/94), podem ter rolado até 40 mil cabeças, incluindo a de Robespierre, principal instigador daquele banho de sangue. Actualmente, a Arábia Saudita mantém a decapitação com espada para condenados por crimes de violação, assassínio, sodomia, bruxaria e tráfico de drogas.

Espanha desenvolveu o seu próprio método de estrangulamento: o garrote. A versão original consistia num colar de ferro que se ia apertando com um parafuso até partir o pescoço e provocar asfixia.

Retirado de:
M.S./I.J.
SUPER 147 - Julho 2010

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Notícia - Reacção imediata


A nossa sobrevivência depende, em primeira instância, de uma infinidade de reflexos, esses gestos automáticos que podemos treinar para torná-los mais eficazes e evitar que se deteriorem à medida que a idade avança.

Final de uma importante competição futebolística. O desafio saldou-se por um empate. As equipas disputam a vitória num tenso duelo de grandes penalidades. Um dos guarda-redes resiste melhor à pressão, adivinha a trajectória de quatro remates e consegue evitar dois golos, averbando o título para a sua equipa. Intuição, sorte? Na opinião dos neurologistas, é tudo uma questão de reflexos, um fenómeno abrangido pela capacidade motora de reacção do indivíduo.

Embora com origem no córtex cerebral, pois requer uma percepção a esse nível e um processamento relativamente complexo, este tipo de reacção é quase inconsciente quando a actividade é repetida, estereotipada e treinada. É por isso que podemos conduzir de forma automática, ou que o guarda-redes consegue chegar à bola e defender o penalty quase sem ter consciência do que está a fazer.

Por outro lado, é habitual associar-se o reflexo ao tempo de reacção perante um estímulo. É claro que tem de haver uma percepção, visual ou auditiva, uma decisão e uma resposta, mas, de acordo com os especialistas em medicina do desporto, embora a antecipação seja importante, é possível melhorar essa capacidade ao trabalhar a força explosiva do atleta e através de treinos específicos, destinados a avaliar as suas reacções aos estímulos. No caso de estar relacionado com a visão, treina-se o sentido da vista para o atleta se concentrar nos objectivos importantes.

Recentemente, comprovou-se, por exemplo, que a capacidade visual dos jogadores de ténis está muito desenvolvida. Roger Federer ou Rafael Nadal são extremamente rápidos e certeiros a processar imagens, o que lhes permite maior precisão quando necessitam de reconhecer objectos em movimento e tomar decisões sob pressão. "São muito mais rápidos a detectar a velocidade de um objecto móvel e, também, a decidir quando o tempo urge", explica Leila Overney, do Laboratório de Neurociência Cognitiva da Escola Politécnica Federal de Lausana (Suiça).

O melhor será, sem dúvida, que se possa exercitá-los. Um guarda-redes terá tanto mais reflexos, no sentido da rapidez de reacção motriz, quanto mais treinar. De igual modo, não conseguimos pontuar tanto num jogo de vídeo da primeira vez do que acontece quando já o conhecemos de cor e salteado.

Todavia, a prática não só permite melhorar os reflexos em geral como, sobretudo, aquele que foi treinado específica e sucessivamente. Por outras palavras, um guarda-redes de um clube de futebol não tem de possuir os reflexos indispensáveis para brilhar no ténis, nem um tenista saber defender grandes penalidades: como é evidente, cada pessoa possui determinada capacidade para um desporto, e não para outro.

Por serem decisões conscientes que requerem uma percepção cortical (do nosso córtex cerebral) e posterior processamento, considera-se que a actividade motora complexa se torna semi-automática ou inconsciente quando os gânglios basais (massa cerebral situada na zona profunda dos hemisférios) assumem o respectivo comando.

No entanto, a capacidade de reacção não é apenas importante no desporto. Os neurologistas recordam que os reflexos são fundamentais para a nossa sobrevivência no quotidiano, podendo ser definidos como "movimentos involuntários, rápidos e estereotipados, provocados por um estímulo"; consoante a natureza deste último, podem ser visuais, vestibulares, auditivos, posturais... Por outro lado, as vias reflexas possuem uma componente sensorial que se encarrega de receber a informação e transportá-la até à medula espinal, e um componente efector, que a transmite da medula ao músculo adequado.

Os reflexos são padrões hereditários de comportamentos comuns a toda uma espécie. Através deles, obtemos respostas simples, rápidas e automáticas para a defesa de uma parte ou de todo o corpo diante de um estímulo potencialmente lesivo", explica a dra. Victoria González, uma neurofisióloga espanhola cujos estudos sobre o chamado "reflexo auditivo de sobressalto" (que consiste na contracção generalizada de amplos grupos musculares perante um estímulo sonoro intenso e inesperado) confirmam como são indispensáveis. "Esse abalo brusco, ou susto, é rapidíssimo (ocorre em milésimos de segundo) e é acompanhado de uma reacção do sistema nervoso autónomo: uma descarga de adrenalina e um começo de hiperventilação. Depois, pode produzir-se uma reacção defensiva ou orientativa", explica a especialista.

O reflexo localiza a fonte acústica; se for intensa, os pequenos ossos do aparelho auditivo retesam-se automaticamente para que entre menos som no ouvido interno. Deste modo, protegem-se as células ciliadas, que transformam as vibrações em impulsos eléctricos; distingue-se melhor a acústica de intensidade elevada e ficamos em alerta.

O reflexo auditivo de sobressalto já se pode observar no início da vida. Por exemplo, os bebés com dois meses, que se assustam com o próprio choro, reagem aos ruídos estendendo os braços para a frente, com as palmas das mãos voltadas para cima e os polegares flectidos. Aliás, quando se bate com a mão suavemente junto da cabeça, o bebé abre e fecha os braços. A verdade é que os actos reflexos são considerados um sinal de evolução do próprio feto, nomeadamente no último trimestre de gestação, altura em que o sistema nervoso se torna maduro. São designados por "reflexos arcaicos" e desaparecem dois ou três meses depois do parto. Esses reflexos primitivos que podemos observar no recém-nascido (como o de sucção, da marcha automática, da preensão palmar e plantar, do abraço, etc.) são de origem cerebral e inatos.

As reacções do neonato traduzem-se em movimentos automáticos, que partem do tronco encefálico (a parte mais primitiva do cérebro) e não envolvem qualquer participação cortical, ou seja, não são controlados voluntariamente. Alguns gestos, como chupar o dedo ou dar pequenos pontapés, surgem ainda no ventre materno; quando decidem abandoná-lo, os reflexos ajudam o feto a colocar-se na posição adequada, dar a volta e descer pelo canal do parto.

Todavia, isto é só o começo. Pouco depois de nascer, o bebé já consegue mamar, graças ao reflexos de sucção e deglutição. Em seguida, os gestos primitivos são gradualmente substituídos por outros posturais, como o reflexo tónico assimétrico do pescoço, que relaciona o movimento da cabeça para um lado com o do braço equivalente, o qual se estica, o que se revela muito útil quando se está voltado de barriga para baixo.

A ausência de reflexos primitivos no recém-nascido pode ser indício de alterações neurológicas ou do sistema nervoso. A fim de comprovar o seu correcto funcionamento, o pediatra recorre a uma série de testes, como pô-lo de pé sobre uma superfície dura: o reflexo será inclinar-se e dar alguns passos. Outro teste será meter-lhe o dedo na boca para comprovar se tem o reflexo de sucção, se engole saliva e se volta a cabeça na sua direcção.

Embora estas reacções desapareçam passado algumas semanas, podem voltar a surgir na idade adulta, devido a doenças ou acidentes. Existe um teste (conhecido por "sinal de Babinski") para detectar uma eventual lesão mental ou uma paralisia cerebral: se se estimular a planta do pé e o dedo grande se separar dos outros e flectir para cima (o que é normal em crianças até aos dois anos), constitui um indício de lesão nas vias nervosas que ligam a medula espinal ao cérebro.

Por outro lado, alguns distúrbios neurológicos que produzem lesões no lóbulo frontal, como os acidentes vasculares cerebrais ou a demência frontotemporal, têm como consequência o aparecimento dos referidos reflexos primitivos, indício de que se está a gerar uma doença neurodegenerativa.

Seja como for, os reflexos mais estudados são os osteotendinosos, detectados através da percussão, com um pequeno martelo, de um tendão como o patelar ou rotuliano (no joelho), ou o bicipital (na prega do cotovelo). Com a extensão brusca do músculo, os receptores sensitivos activam-se e enviam um sinal à medula espinal, onde o neurónio-receptor entra em contacto com o neurónio-motor. É desta forma que evitamos esticar bruscamente os músculos para manter o equilíbrio; ou seja, quando estamos de pé, os nossos músculos impedem automaticamente a perda de postura, contraindo-se para evitar a descompensação.

Assim, o teste aos reflexos osteotendinosos destina-se a fornecer-nos informação sobre o funcionamento dos nervos periféricos sensitivos, a medula espinal e o controlo desses reflexos pelo córtex. Através do teste, fica-se a saber, entre outras coisas, que o nível quatro lombar está bem, isto é, que nem os neurónios sensitivos nem os motores desta região da medula sofreram qualquer alteração.

Do mesmo modo que os reflexos arcaicos podem ressurgir por causa de alguma doença, os osteotendinosos podem desaparecer devido a um problema que afecte os nervos periféricos, como a neuropatia diabética. Por sua vez, uma lesão no córtex cerebral pode provocar, em determinados casos, hiperreflexia ou reflexos exagerados. Todavia, mesmo que não haja qualquer problema de saúde, é normal que, com a idade (a partir dos 40 anos, segundo os especialistas), os reflexos comecem a tornar-se progressivamente mais lentos, embora sem afectar a qualidade de vida.

Na velhice, a situação muda. Os idosos têm, naturalmente, uma actividade motora mais lenta, mas certos sintomas, como quedas frequentes, movimentos desajeitados, lentidão em falar, dificuldade em tomar decisões ou inexpressividade facial podem constituir indícios de uma doença degenerativa. Alguns reflexos, como os que controlam a postura, começam a perder-se com a idade, o que favorece as quedas. A verdade é que, na história destes mecanismos automáticos, alguns vão ficando irremediavelmente para trás.

Um sofisticado sistema de defesa

Os reflexos são a resposta do organismo para proteger os sentidos das agressões do meio. Eis alguns dos mais importantes:

Posturais e tónicos. Mantêm a cabeça direita e o corpo na vertical. Utilizam informação do aparelho vestibular, que indica a posição da cabeça no espaço (reflexos vestibulares), e dos receptores nos músculos do pescoço, os quais indicam se estiver flectido (cervicais).

Superficiais ou cutâneos. São desencadeados por estimulação da pele, das mucosas e da córnea. Incluem o reflexo pupilar (dilatação da pupila perante uma dor).

Fotomotor. Contracção da pupila devido a um estímulo luminoso.

Corporais visuais. Movimentos exploratórios dos olhos e da cabeça para ler, por exemplo; e dos olhos, da cabeça e do pescoço perante um estímulo visual. Incluem ainda o reflexo do pestanejo diante de um eventual perigo.

Auditivo. Perante um ruído demasiado forte, favorece a rigidez automática dos pequenos ossos do ouvido, de forma a passar menos som para o ouvido interno

Tussígeno. A irritação da laringe, da traqueia ou dos brônquios produz tosse para eliminar secreções e corpos estranhos.

Nauseoso. Produz vómitos quando se estimula a garganta ou a parte posterior da boca.

Do espirro. Ajuda a expulsar ar e partículas quando as vias nasais ficam irritadas.

Do bocejo. Surge quando o organismo precisa de oxigénio suplementar.


J.M.D.
SUPER 148 - Agosto 2010

terça-feira, 9 de maio de 2017

Notícia - Afinal, o “gene da longevidade” não existe

A investigação de Filipe Gomes Cabreiro foi publicada na Nature e destrói a relação íntima que se pensava existir entre as sirtuínas e a longevidade. Cai por terra também a ideia abraçada pelo mundo dos cosméticos que o resveratrol (produto natural encontrado no vinho tinto) é capaz de hiperactivar esta enzima, perdendo assim os seus super poderes no atraso do processo de envelhecimento. O investigador português a trabalhar no University College London (UCL) participou no estudo que poderá ser a machadada final no conceito criado no século XXI da existência do chamado “gene de longevidade”.

Os primeiros resultados divulgados sobre as sirtuínas (por Sinclair e Guarente) referiam que a sua sobre-expressão era capaz de aumentar a longevidade e também que estas eram necessárias para os efeitos de restrição calórica [capaz de atrasar o envelhecimento].

Por outro lado, demonstravam também que o resveratrol activava as sirtuínas e, consequentemente, aumentava a longevidade. Tudo isto foi comprovado primeiro no modelo da levedura e, mais tarde, em vermes (C. elegans) e moscas (Drosophila). No caso do verme sustentava-se mesmo que a activação de sirtuínas podia levar estes a viver 50 por cento mais tempo. O popular gene das sirtuínas acabou por ficar conhecido como “gene da longevidade”, tal era o seu promissor potencial.

Porém, o trabalho de outros grupos de investigação fez perceber que, afinal, as sirtuínas não eram necessárias para o desejado efeito de restrição calórica na levedura e que não era claro que o resveratrol activasse as sirtuínas. O castelo de cartas começava a cair. Outras investigações feitas mais tarde provaram também que o resveratrol não aumentava a longevidade nos vermes ou nas moscas e que as sirtuínas não eram necessárias para a restrição calórica nos vermes. Mais um ataque ao conceito inicialmente proposto.

Agora, o trabalho apresentado por Filipe Gomes Cabreiro na Nature – com colegas da UCL, da Universidade de Washington (Seattle), e da Universidade de Semmelweis (Budapeste) - acaba por destruir o pouco que restava. “Mostramos que de facto a manipulação deste gene não promove a longevidade quer da mosca quer do verme, que o resveratrol não activa a sirtuínas da mosca e que as sirtuínas não são necessárias para a restrição calórica nestes organismos”, resume o investigador ao PÚBLICO, numa resposta por email.

Assim, a única informação que parece ainda permanecer de pé é que a sobre-expressão desta enzima aumenta a longevidade na levedura. “Contudo, estudos recentes não publicados mostram que a sobre-expressão desta enzima aumenta a longevidade apenas da levedura (Budding yeast) mas não da Fission Yeast (que possui processos biológicos mais semelhantes aos processos humanos)”, explica Filipe Cabreiro.

Ao longo dos últimos anos, as sirtuínas tornaram-se num “produto” muito apetecível. Aliás, a empresa ligada a esta descoberta foi comprada em 2003 pela farmacêutica Glaxo SmithKline por 720 milhões de dólares. O objectivo seria o desenvolvimento de produtos anti-envelhecimento e drogas que prevenissem doenças associadas ao envelhecimento, incluindo diabetes, doenças cardiovasculares e mesmo cancro.

O alegado papel do resveratrol também tem sido explorado (no mundo dos cosméticos, por exemplo). Vários cremes anti-envelhecimento foram lançados no mercado contendo o produto natural encontrado no vinho tinto e supostamente um activador das sirtuínas. É o fim deste negócio? “O envelhecimento é multi-factorial. Assumir a ideia vendida por estes papers que existia um único gene capaz de controlar o envelhecimento era de facto muito simplista. Este estudo, conjuntamente com os anteriores põe de facto em causa todos os produtos que tinham como alvo as sirtuínas de forma a retardar o envelhecimento. Não só as sirtuínas não têm nenhum efeito na longevidade como para além disso o resveratrol, apesar de ter benefícios, não activa as sirtuínas. Contudo, não excluímos que o resveratrol tenha outros benefícios, mas estes não são mediados pelas sirtuínas e mesmo que fossem estas não teriam o efeito desejado e esperado com base nas anteriores descobertas”, responde Filipe Cabreiro.

domingo, 7 de maio de 2017

Notícia - Cavalheiros cientistas

Quando (quase) ainda não havia profissionais

Ricos e filantropos, investigavam por puro prazer. Sem eles, o progresso teria sido muito diferente. Na segunda metade do século XIX, um jovem escocês, Robert Kidston (1852–1924), herdou uma boa quantia, o que lhe permitiu viver sem dificuldades e pagar os seus estudos de paleontologia e posterior investigação sobre a flora arcaica. Após a sua morte, a colecção de 7500 plantas e 400 desenhos que deixara foi doada à British Geological Survey (BGS), instituição dedicada ao estudo da Terra. Ali permaneceu, semi-esquecida, até que alguém se apercebeu, recentemente, que esses fósseis de 360 milhões de anos, em excelente estado de preservação, constituíam uma valiosa ferramenta para analisar as alterações climáticas e as florestas paleozóicas.

A importância do legado de Kidston é equiparável à de outros gentlemen scientists, cavalheiros abastados que se dedicaram à investigação simplesmente como hobby. A verdade é que muitos cientistas dos séculos XVII, XVIII e XIX, aos quais devemos grandes descobertas em diversos campos, puderam consagrar a vida ao estudo por descenderem de famílias nobres ou terem casado com mulheres ricas, numa época ou que não havia apoios económicos dos governos para esse fim. Quase todos pertenciam à aristocracia britânica e faziam parte, como o próprio Kidston, da Royal Society, uma associação formada em Londres, em 1660, por um grupo de homens irrequietos que se reuniam para debater filosofia, anatomia, matemática e ciência em geral.

Entre os fundadores, havia personalidades como William Brouncker ou Sir Christopher Wren, filho do diácono dos reis de Inglaterra e o arquitecto responsável pela reconstrução da Catedral de São Paulo, em Londres. Integrava também o aristocrata irlandês Robert Boyle (1627–1691), herdeiro do conde de Cork e precursor da química moderna (é conhecido pela lei de Boyle-Mariotte, sobre o volume dos gases). Aos 15 anos, decidira viajar pelo mundo; quando regressou, já com 17 anos, descobriu que tinha herdado a propriedade de Stalbridge e várias quintas na Irlanda, uma autêntica fortuna que consagrou à investigação.

Duas épocas

Os séculos XVIII e XIX foram muito distintos. No primeiro, os grandes estados europeus, guiados pelas noções do despotismo esclarecido, criaram as academias de ciências para acolher a elite da investigação; fundaram observatórios de astronomia, escolas militares, jardins botânicos, hospitais e colégios de cirurgiões e financiaram expedições científicas. O século XIX, em contrapartida, foi o tempo das revoluções burguesas e do desenvolvimento da universidade moderna, que combina ensino e investigação, como explica o historiador E. Ausejo: “O perfil maioritário deixa de ser o do rico excêntrico para se transformar no do burguês abastado com acesso a uma educação superior e, através disso, a uma profissão científica com inegáveis vantagens para a ascensão social das classes médias.”

Esta evolução não obsta a que muitos cientistas proviessem de famílias nobres ou de grandes tradições, como a de Henry Cavendish (1731–1810). O físico e químico inglês, que descobriu o hidrogénio e estudou, pela primeira vez, a massa da Terra e a força gravitacional, descendia dos duques de Kent e dos duques de Devonshire, linhagens que remontam ao tempo dos normandos. Alguns dos gentlemen scientists constituíam uma nova versão dos sábios do Renascimento, cujo raio de acção abarcava numerosas matérias. Foi o caso de Goldsworthy Gurney (1793–1875), cirurgião, químico, arquitecto, construtor e inventor responsável pelo desenvolvimento dos primeiros veículos a vapor, precursores dos actuais automóveis.

Viajar e pensar

Parece óbvio que a condição financeira deve ter ajudado muito esses investigadores aristocráticos e, embora E. Ausejo duvide de que o estereótipo de cientista milionário fosse generalizado (afirma que se trata de “casos pitorescos mas não tão frequentes; a ciência não foi uma obra de senhorios ociosos”), o facto é que a sua fortuna permitiu a alguns, como Alexander von Humboldt (1769–1859), dedicar a vida à exploração e ao estudo. Graças à avultada herança recebida da mãe, este cavalheiro prussiano pôde viajar, primeiro, até à Grã-Bretanha, para se formar, e, depois, partir à descoberta de outros continentes. Humboldt foi geógrafo e naturalista, além de especialista em etnografia, astronomia, vulcanologia, física e outras matérias.

Foi, também, um testamento que mudou a vida do geólogo e vulcanólogo escocês James Hutton (1726–1797), responsável por formular o princípio uniformista, segundo o qual os processos naturais que agiram no passado são os mesmos que operam no presente. Hutton era médico mas trocou a profissão pela agricultura quando herdou uma grande propriedade paterna. Como os trabalhos na quinta iam de vento em popa, mudou-se para Edimburgo para se dedicar a tempo inteiro ao estudo da superficie terrestre.

O laboratório em casa

Outro gentleman scientist foi Charles Darwin (1809–1882). Membro da Royal Society, nunca teve problemas económicos. Pelo contrário, provinha de uma família de médicos com um modo de vida folgado e a abastança cresceu ainda mais quando casou com a prima, Emma Wedgwood, herdeira de uma grande fortuna graças ao negócio de olaria dos pais. Isso permitiu a Darwin trabalhar toda a vida em casa e consagrar-se à investigação e à publicação das suas obras.

O autor de A Origem das Espécies partilhava muitas características com o primo, Sir Francis Galton (1822–1911), homem de múltiplos interesses que se dedicou à geografia, à meteorologia e à estatística, além de explorar os trópicos, fundar a psicologia diferencial e inventar a identificação através das impressões digitais. Galton pertencia a uma família que fez dinheiro com a banca, o aço, as armas e um ou outro casamento com mulheres ricas. Por outro lado, herdou também do passado as inquietações científicas do avô, Samuel ­John, que publicou vários livros e foi membro da Lunar Society, um clube de filósofos e intelectuais que se autodenominavam “lunáticos” e se reuniam em noites de Lua Cheia. Entre eles, encontravam-se James Watt, o matemático e engenheiro escocês que foi o artífice da máquina de vapor, e Erasmus Darwin, avô de Charles e pioneiro do evolucionismo.

A botânica foi uma das disciplinas que mais atraíram os investigadores do século XIX, como o londrino Joseph Banks (1743–1820). Rico de nascença, acompanhou Cook na sua primeira grande viagem, entre 1768 e 1771, e introduziu na Europa muitas árvores e plantas desconhecidas até à data, como o eucalipto e a acácia.

O estudo do reino vegetal desenvolveu-se igualmente em Portugal durante o Século das Luzes, quando a ciência estava nas mãos de uma minoria culta, formada por nobres, diplomatas, homens da Igreja... Durante esse perío­do fértil do século XVIII, o conde da Ericeira promoveria as Conferências Discretas e Eruditas, de onde saíram sócios para criar a Academia da Ciência (1720); o rei D. José adere ao movimento do despotismo esclarecido e apoia o marquês de Pombal na instituição do Colégio dos Nobres e na criação de gabinetes, laboratórios e museus. Já no século XIX, é criado o Jardim Botânico da Universidade de Lisboa, por iniciativa do conde de Ficalho e de Andrade Corvo, considerado um “moderno e útil complemento para o ensino e investigação botânicos na Escola Politécnica, símbolo dos novos rumos de progresso social e científico”.

Eclosão vegetal

Embora Francisco Manuel de Mello Breyner, o conde de Ficalho, se tivesse destacado como botânico e se enquadre no perfil de gentleman scientist, outros nomes conhecidos da botânica portuguesa talvez tivessem nomes menos sonantes ou não pudessem dispor de tantos recursos, mas a sua obra foi igualmente importante, como é o caso, entre outros, de Avelar Brotero (1744–1828), professor de botânica e agricultura na Universidade de Coimbra e autor de obras como Flora Lusitânica, na qual identificava cerca de 1800 espécies, muitas delas desconhecidas até então. Em sua honra, foi fundada a Sociedade Broteriana, agremiação científica que viria a exercer grande importância no desenvolvimento da botânica portuguesa através do seu Boletim.

Outro indiscutível cavalheiro da ciência foi o abade Correia da Serra (1750–1823), que se dedicou sobretudo à investigação nas áreas da botânica e da geologia e fundou, juntamente com o duque de Lafões, a Academia de Ciências de Lisboa. De grande prestígio intelectual, conviveu com os maiores cientistas da sua época e publicou trabalhos nas mais conceituadas revistas, tendo mesmo sido descrito pelo presidente Thomas Jefferson, dos Estados Unidos, como “o homem mais erudito que jamais conheci”. Com o prestígio e os conhecimentos que possuía no exterior, este presbítero secular e fidalgo da Casa Real ajudou o país a desenvolver a investigação e a mentalidade científicas, num esforço para Portugal não ficar completamente para trás em termos europeus.

Claro que, apesar disso, tudo era feito de modo muito mais modesto do que, por exemplo, no Reino Unido. Os meios eram incomparavelmente menores e reinava a precariedade. A “descolagem” científica apenas se verificaria mais de um século depois. Seja como for, muitos investigadores europeus dos séculos XVIII e XIX eram amadores que se dedicavam à ciên­cia por diversão, embora ganhassem a vida noutras profissões. O próprio Darwin era um jovem cientista amador quando embarcou no HMS Beagle; o primeiro microscópio composto foi inventado por Zacharias Janssen, um mercador holandês e cientista amador, e há muitos outros exemplos.

Colecções e museus

Em Portugal (como noutros países), há diversos exemplos de grandes coleccionadores cujas obras de arte e objectos reunidos ao longo da existência deram origem à criação de museus baptizados com os seus nomes: é o caso do Museu Calouste Gulbenkian ou, mais recentemente, do Museu Berardo, ambos si­tuados em Lisboa. Tanto um como outro podem ser considerados mecenas das artes.
Os belgas Paul Otlet (1868–1944) e Henri La Fontaine (1854–1943), filhos de famílias da alta burguesia, foram também grandes coleccionadores. Juntos, criaram a classificação decimal universal, método bibliográfico para ordenar e catalogar as obras nas bibliotecas, além do Mundaneum, um espaço que reuniria todo o saber em pequenas fichas interligadas. Otlet foi um visionário que antecipou a internet: “A mesa de trabalho deixará de estar cheia de livros. Em vez disso, terá um ecrã e um telefone. Um edifício imenso servirá para armazenar todos os livros e toda a informação e, através de uma chamada, será possível pedir qualquer página para se poder ver no ecrã”, escreveu. O belga imaginou “uma máquina para o trabalho intelectual, suporte de uma enciclopédia completa e colectiva que possa reflectir o pensamento humano e a materialização gráfica de todas as ciências e as artes; todos os pensadores de todas as épocas estariam a colaborar na sua criação; esse novo meio vai permitir formar um Livro Universal”. Uma obra assim acolheria o trabalho de todos os cavalheiros da ciência.

Altruístas do século XXI

Actualmente, não há muitos cientistas a trabalhar exclusivamente por amor à ciência, mas ainda resta um ou outro. De acordo com Millán Muñoz, director do Centro de Estudos Ambientais do Mediterrâneo (CEAM), um deles é Robert Schemenauer, um meteorologista canadiano que, após trabalhar durante anos para o Governo do seu país, decidiu retirar-se para uma casa nas montanhas. Ali, desenvolveu um sistema de recolha de água do nevoeiro e neblinas com uma rede de polipropileno (semelhante ao nylon), capaz de captar e armazenar a humidade. Depois, fundou a FogQuest (http://www.fogquest.org), organização sem fins lucrativos destinada a promover projectos para abastecer de água comunidades rurais de países em vias de desenvolvimento. Algumas povoações do planalto sul-americano e de vários paí­ses africanos já dispõem de água potável graças a esta técnica.



J.M.D./I.J.
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