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sábado, 24 de março de 2018

Notícia - Cem mil visitam Darwin

Entre 70 a 100 mil pessoas vão passar, a partir de hoje e até 24 de Maio, pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, onde está patente uma exposição sobre a vida e legado de Charles Darwin. ‘A Evolução de Darwin’, é considerada a "melhor exposição sobre Darwin em toda a Península Ibérica", conforme afirmou Mariano Gago, ministro da Ciência e Tecnologia. Poderá ser vista de terça-feira a domingo, entre as 10h00 e as 18h00, por 4 euros.




A expectativa junto do público mais jovem é enorme, tanto mais que as 600 visitas programadas para grupos de alunos estão esgotadas há mais de um mês e meio, existindo ainda uma lista de espera com centenas de escolas. "Essa é a nossa grande aposta. Às escolas que não conseguiram acesso a uma visita guiada, estamos a disponibilizar exactamente o mesmo material pedagógico que fornecemos às outras. Isso inclui uma biografia de Darwin, um livro ilustrado sobre evolução e manuais de visita detalhados", afirmou ao CM o biólogo José Feijó, comissário científico da exposição.

A iniciativa está inserida nas comemorações dos 200 anos do nascimento de Charles Darwin e dos 150 anos da publicação do livro ‘A Origem das Espécies’, obra que mudou a forma como a Humanidade se via a si própria até à época.

Os grandes focos de atracção são, de acordo com José Feijó, a reconstituição da figura do naturalista inglês e a réplica do barco ‘HMS Beagle’. Quem visitar a exposição vai poder encontrar logo à entrada um Charles Darwin, em tamanho real, a observar um escaravelho na mão esquerda. A réplica foi feita por Elisabeth Daynss, com base em registos fotográficos do inglês, responsável por reconstituições famosas como a de Tutankhamon.

"Nesta antecâmara, a ideia é fazer uma ‘lavagem cerebral ao visitante’ de forma a que o visitante se depare com o mesmo cenário da época que antecedeu a Darwin", explicou José Feijó, realçando a importância deste ambiente: "É uma época de debate de ideias que motivou os interesses e as descobertas de Darwin."

Após esta viagem ao passado, o visitante entra num percurso alucinante de descobertas científicas que marcaram a Humanidade para sempre. Nos oito espaços distintos da exposição, estão em exibição vídeos sobre Darwin, a réplica do navio ‘HMS Beagle’ e um espólio riquíssimo de vários museus nacionais e internacionais.

INVESTIMENTO DE 1,3 MILHÕES

Para concretizar esta exposição foi necessário um investimento de 1,3 milhões de euros. "O objectivo não era criar algo que acabasse no final da exposição. Será algo maior que terminará com a construção de um museu permanente em Oeiras no final de 2011. Até lá, a exposição irá percorrer várias cidades do Mundo", explicou José Feijó.

FIGURAS-CHAVE DA EVOLUÇÃO HUMANA

1735 – Carl Linnaeus sugere que as plantas descendem de um antepassado comum. Publica ‘Sistema Naturae’, a base da taxinomia moderna.

1858 – Alfred Russel Wallace envia um ensaio a Darwin, no qual apresenta ideias sobre a evolução natural das espécies, pressionando Darwin a escrever ‘A Origem das Espécies’.

1865 – O monge checo Gregor Mendel investiga o caracter hereditário. As suas ideias só serão, contudo, reconhecidas no século XX.

1925 – O professor norte-americano John Scopes é condenado, no que ficou conhecido como o ‘Julgamento do Macaco’, por ensinar a Teoria da Evolução no Estado do Tennessee.

1933 – O extermínio na Alemanha Nazi baseou-se em experiências eugenistas, na Califórnia, onde 60 mil pessoas foram esterilizadas.

1953 – Descoberta a estrutura do ADN por James Watson e Francis Crick. Conhecido o código genético, surge a oportunidade de estudar a biologia molecular da evolução.

CRIACIONISMO CONTESTA EVOLUÇÃO

Na exposição da Gulbenkian está patente uma escada de ADN com 3,6 metros de altura que assinala a descoberta do código genético. Este avanço na Ciência não diminuiu a polémica nos EUA, existindo escolas que recusam ensinar a Teoria de Evolução de Darwin por acreditarem na criação divina. O ex-presidente Bush na campanha de 2000 defendeu o tratamento igual para as duas correntes.

CRONOLOGIA

1809

Charles Robert Darwin nasce a 12 de Fevereiro em Shrewsbury, em Inglaterra, no seio de uma família abastada. O pai, Robert Waring Darwin, era um reconhecido médico inglês que tentou recrutar o filho para a mesma profissão.

1825

Após uns primeiros anos de rebeldia, o pai decide dar um rumo a Darwin, inscrevendo-o no curso de Medicina na Universidade de Edimburgo. Dois anos depois, Charles Darwin abandona os estudos.

1831

A 27 de Dezembro, Charles Darwin deixa Plymouth a bordo do Navio de Sua Majestade Beagle. Com apenas 22 anos, dá início a uma viagem que terminaria em 1836. A primeira paragem foi em Cabo Verde.

1835

Em Setembro chega às ilhas Galápagos, onde as observações de Charles Darwin lhe permitem sustentar a teoria da evolução apresentada mais tarde.

1839

Em Maio, Charles Darwin publica ‘A Viagem do Beagle’ no qual descreve a aventura de cinco anos. No mesmo ano casa-se com a prima Emma Wedgood, com quem tem dez filhos. Muda-se para uma quinta em Downe onde morre.

1859

Uma reflexão de 20 anos até publicar o livro ‘A Origem das Espécies’, apresentando a sua teoria da selecção natural.

1871

Darwin publica ‘A Descendência do Homem’ demonstrando que Homem e macaco têm o mesma origem.

1882

A 19 de Abril, Charles Darwin morre com 73 anos, sendo enterrado na Abadia de Westminster.

INICIATIVAS

RECEITA DE BOLO

Receita de bolo de aniversário do cientista que a esposa, Emma, realizava. Disponível em www.darwin2009.pt.

RÉPLICA DO CIENTISTA

Réplicas do cientista e de hominídeos podem ser vista no Parque Biológico de Vila Nova de Gaia.

DIÁLOGO COM A ESPOSA

Conversa entre o cientista e a esposa Emma, no Centro de Ciência Viva de Aveiro.

ESPÓLIO NACIONAL

Exposição no Museu de História Natural da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

IMPACTO NA CIÊNCIA

4.º Ciclo de Conversas na Aldeia Global: ‘Do Mundo Fechado ao Universo Infinito’, no Auditório da Biblioteca Municipal de Oeiras, pelas 21h30, a 12 de Setembro, 12 de Março e 16 de Abril.

ZOO

Em colaboração com o Jardim Zoológico de Lisboa, há animais vivos numa galeria anexa ao recinto da exposição, como tartarugas. A mostra na Gulbenkian integra também colecções de vários museus nacionais.

André Pereira

Notícia - Vamos clonar neandertais?

A publicação do primeiro esboço do genoma neandertal reacendeu o debate sobre a hipótese de clonar o nosso parente extinto. As enormes complexidades de carácter técnico, ético e jurídico do processo dividem os especialistas.

Se os neandertais voltassem a pisar a Terra, o barro primordial do qual surgiriam seria uma emulsão de óleo, água e ADN sintetizado no laboratório da empresa 454 Life Sciences (­www.454.com). Com efeito, nos últimos quatro anos, os funcionários da companhia biotecnológica sediada em Branford, no Connecticut, dedicaram-se a reunir material genético proveniente de diversos vestígios orgânicos, incluindo fragmentos de osso. A tarefa revelou-se fundamental para se poder delinear o primeiro esboço do genoma do Homo neanderthalensis, cujas conclusões foram publicadas, em Maio, na revista Science. Notícia explosiva: confirma-se que houve acasalamento entre o Homo sapiens e o seu antecessor mais próximo, como sustentaram João Zilhão e Erik Trinkhaus.

Embora a confirmação desse cruzamento pré-histórico tenha merecido uma posição de destaque nas primeiras páginas dos jornais, os cientistas estão interessados em ir mais longe; querem conhecer a fundo a biologia dos neandertais, em especial o que os distingue de nós. Ora a forma mais directa de obter informação seria clonar exemplares inteiros, como acontece com os dinossauros de Parque Jurássico. Seria possível em termos técnicos? E, no caso de conseguirmos, teríamos o direito de trazê-los de volta ao mundo? Como poderiam encaixar-se numa sociedade humana moderna?

Nas instalações da 454 Life Sciences, Gerald Irzyk, Jason Affourtit e Thomas Jarvie explicam-nos os busílis do seu trabalho. No começo, os estudos genéticos dos neandertais concentravam-se apenas nas mitocôndrias, organitos que transformam os nutrientes em energia no interior das células. Porém, em 2005, a 454 iniciou um projecto multidisciplinar em colaboração com o Instituto Max Planck de Leipzig, na Alemanha, que iria ampliar definitivamente o campo de acção dos cientistas. O objectivo é obter a sequência completa do material genético de uma fêmea morta, há 30 mil anos, numa caverna croata de Vindija.

A companhia do Connecticut desenvolveu um método para decifrar centenas de milhares de sequências de ADN em simultâneo. Segundo Jarvie, a tecnologia avança a uma velocidade comparável à potência de processamento dos computadores. “Há seis anos, descodificar o genoma da bactéria E. coli, que conta aproximadamente quatro milhões de pares de bases, teria custado entre um e dois milhões de dólares e exigido a dedicação de 150 pessoas durante um ano”, explica. “Agora, uma única pessoa consegue fazê-lo em dois dias por algumas centenas de dólares.”

Contudo, há um factor que aumenta a dificuldade da tarefa quando os investigadores têm de lidar com espécies já extintas: a degradação do material genético. Com efeito, poucas horas após a morte, as células começam a decompor-se, num processo denominado “apoptose”, e a libertar enzimas que dividem o ADN em diminutos fragmentos. Depois, o ácido desoxirribonucleico sofre alterações químicas que podem induzir interpretações incorrectas da sequência genética. No caso da amostra neandertal, entre 90 e 99 por cento do ADN provém de bactérias e outros elementos alheios que penetraram nos restos ósseos à medida que estes iam ficando soterrados. Devido à semelhança entre o genoma neandertal e o dos humanos modernos, o problema poderá revelar-se especialmente grave se a contaminação for proveniente de pessoas que escavaram ou analisaram o osso.

Clonar um neandertal será ainda mais trabalhoso do que reconstituir o seu genoma. A tecnologia de que dispomos permite reproduzir artificialmente uma cópia exacta da sequência de ADN de forma rápida e barata, mas um filamento de ácido desoxirribonucleico a flutuar livremente não tem muito valor para dar vida a uma célula. “Como empacotar os genes em cromossomas para os introduzir num núcleo? Não sabemos fazê-lo”, admite James Noonan, geneticista da Universidade de Yale.

A forma adoptada pelo ADN dentro dos cromossomas condiciona o modo como os genes interagem com os compostos químicos do interior da célula. Como essas interacções controlam a produção de proteínas, os tijolos do organismo, a expressão do genoma é tão importante como o próprio ADN. Segundo Carles Lalueza-Fox, paleogeneticista da Universidade de Barcelona, os danos celulares que ocorrem após a morte impedem-nos de conhecer como se produz exactamente o complexo processo bioquímico. Obter um clone idêntico de alguém que viveu há 30 mil anos seria, deste ponto de vista, uma impossibilidade.

Outra forma de abordar o problema consistiria em alterar o ADN de uma célula viva, um tipo de bioengenharia que já é exequível, embora apenas se possa efectuar poucas modificações. George Church, professor da Escola de Medicina de Harvard (Estados Unidos), faz parte de uma equipa de investigação que pretende produzir centenas de alterações através de uma técnica denominada “engenharia genómica automatizada em multiplex” (MAGE, na sigla inglesa). Os especialistas de Harvard utilizam fibras de ADN muito curtas, denominadas “oligonucleótidos”, para inserir material genético em locais específicos. O MAGE já permitiu produzir 24 alterações nos genomas de bactérias, ratos e células humanas. Trata-se de um primeiro passo encorajador, mais ainda bastante tímido: Church estima que seriam necessárias cerca de dez milhões de modificações para conseguir que um genoma humano moderno coincidisse com o do homem do Nean­dertal.

O investigador considera que a clonagem deveria partir de um nível básico; as células de órgãos como o fígado, o pâncreas ou o cérebro. “Não se deduz nada se nos limitarmos, simplesmente, a observar a sequência genética. É difícil prever os caracteres físicos; é preciso comprová-los em células vivas”, explica. A investigação médica poderia beneficiar do feito: se os neandertais fossem suficientemente diferentes da nossa espécie, as suas células seriam geneticamente imunes a doenças humanas como a sida ou a poliomielite. As diferenças biológicas também poderiam contribuir para o desenvolvimento de novos fármacos ou tratamentos genéticos.

Até agora, os esforços para ressuscitar espécies extintas através da clonagem têm tido resultados frustrantes. A 6 de Janeiro de 2000, uma violenta tempestade no Parque Nacional de Ordesa, em Espanha, derrubou o ramo de uma árvore que pôs fim à vida de Celia. Tratava-se do último exemplar de Capra pyrenaica pyrenaica, uma subespécie de cabra montês. Em 2003, uma equipa de investigadores tentou ressuscitar a estirpe de Celia a partir de uma amostra de tecido proveniente da orelha do animal, congelada quando ele ainda estava vivo. Conseguiram, dessa forma, implantar 57 embriões da subespécie no útero de várias cabras montesas: 52 não sobreviveram ao período de gestação, quatro nasceram mortos e a única cria sobrevivente morreu dez minutos depois de ter nascido, devido a uma deficiência pulmonar. A fim de criar os clones de Celia, os cientistas espanhóis ugtilizaram métodos desenvolvidos pela Advanced Cell Technology (ACT), uma companhia biotecnológica com sede em Worcester, no Massachusetts. A técnica, denominada “transferência nuclear”, consiste em extrair o núcleo de uma célula proveniente de uma espécie com a qual possui um estreito parentesco e substituí-lo por outro com o ADN clonado. No caso da cabra montesa, foram utilizados óvulos de cabra doméstica. De acordo com Robert Lanza, director científico da ACT, já foram efectuadas clonagens de gado bovino, ovino e caprino de forma rotineira com recurso a esta técnica.

No entanto, as espécies que não são habitualmente “fotocopiadas” têm de enfrentar sérios riscos, pois o processo de transferência nuclear provoca, frequentemente, a morte da célula. É por isso que praticamente toda a comunidade científica se opõe a qualquer experiência com a nossa própria espécie. Mesmo que se conseguisse aperfeiçoar o método, iria exigir, provavelmente, um terrível período de tentativa e erro.

Porém, existe outra opção: fabricar células estaminais com o ADN dos neandertais. Nos últimos anos, os geneticistas aprenderam a obter células da pele para fazê-las regressar ao denominado “estado pluripotencial”, no qual podem integrar qualquer elemento do corpo humano. George Church sugere utilizar a técnica MAGE para alterar o ADN de uma das stem cells, de modo a fazê-la coincidir com o genoma neandertal. Dessa forma, seria possível cultivar colónias de células do coração, do cérebro ou do fígado, órgãos e, em última instância, organismos inteiros. O processo para ressuscitar um ser do passado consistiria, fundamentalmente, em implantar a célula estaminal com o ADN neandertal num blastocisto (fase inicial do embrião) humano. Church considera que, após as primeiras etapas de desenvolvimento, os genes se exprimiriam tal como o fariam no indivíduo primordial, eliminando qualquer influência do Homo sapiens.

Até agora, a técnica foi apenas experimentada em ratos, mas Church pensa que poderia funcionar em hominídeos. Contudo, adverte que esta clonagem nunca poderia abranger os factores culturais e ambientais que influenciavam o crescimento dos verdadeiros neandertais. “Seriam neo-neandertais”, define.

O Homo neanderthalensis separou-se da linhagem dos seres humanos modernos há cerca de 450 mil anos. Desenvolveu um cérebro maior e uma estatura inferior à do seu presumível antecessor, o Homo heildelbergensis. Criou igualmente uma grande variedade de ferramentas de pedra, assim como técnicas mais eficientes para fabricá-las. Possuíam, em média, encefálos 100 centímetros cúbicos maiores do que os dos actuais humanos, o que poderá ser explicado pela diferença na constituição física. Exibiam crânios largos e achatados, uma testa mais baixa do que a nossa e um rosto sem queixo.

Por outro lado, os ossos grossos e fortes costumam exibir marcas de fracturas, pois as técnicas cinegéticas que utilizavam obrigavam-nos a aproximar-se demasiado das grandes presas, como é o caso dos bisontes ou dos mamutes. Possuíam grandes caixas torácicas em forma de barril e narizes proeminentes, características que talvez os ajudassem a respirar quando caçavam a temperaturas muito baixas, segundo conjecturam alguns paleoantropólogos.

Estudos recentes proporcionaram perspectivas surpreendentes. “Não são simplesmente uma espécie de esquimós pitorescos que viveram há 60 mil anos”, diz Jean-Jacques Hublin, paleoantropólogo do Instituto Max Planck. “Tinham outra maneira de dar à luz e diferenças fisiológicas, na forma do ouvido interno ou na idade de desmame e da puberdade.” Um estudo demonstrou que os neandertais tinham uma infância abreviada: alguns estudiosos pensam que atingiam a maturidade física aos 15 anos.

Seja como for, há quem ache que eles não eram suficientemente estranhos para se poder considerar que pertenciam a outra espécie. “Actualmente, há seres humanos que apresentam fenótipos [conjuntos de características físicas] ainda mais distintos entre si”, argumenta John Hawks, paleoantropólogo da Universidade do Wisconsin. Hawks estudou o ADN de populações modernas para com­preen­der a taxa de alteração evolutiva no Homo sapiens. Muitas das diferenças dever-se-iam a transformações genéticas que a nossa estirpe teria sofrido a partir da extinção dos neandertais, há 30 mil anos.

“Desde então, contabilizámos entre 2500 e 3000 acontecimentos que desencadearam modificações favoráveis no genoma humano”, recorda Hawks. Somos tão diferentes dos povos neolíticos que viveram há dez mil anos como estes o teriam sido dos neandertais. Em concreto, os clones de Homo neanderthalensis manifestariam intolerância à lactose, dificuldade em metabolizar o álcool, propensão para desenvolver a doença de Alzheimer e ausência de imunidade a outras infecções. Mais importante do que tudo, é o facto de contarem com cérebros distintos do do homem moderno.

Todavia, não convém subestimar aquelas mentes, capazes de impressionantes inovações culturais. Já enterravam os mortos há 110 mil anos, o que significa que o seu sistema social exigia a inumação formal dos falecidos. Além disso, há cerca de 40 mil anos, adoptaram novas técnicas para fabricar ferramentas: a tradição uluzziense, em Itália, e a chatelperronense em toda a Europa Ocidental. Nesse caso, se eram tão versáteis como o Homo sapiens, por que motivo se extinguiram? Chris Stringer, do Museu de História Natural de Londres, considera que a nossa espécie caçava e recolhia alimentos de forma tão intensiva que já não havia, simplesmente, espaço para os ­neandertais procurarem sustento. Por outras palavras, foram expulsos do seu nicho ecológico, tal como está a acontecer com muitos animais nos nossos dias.

Bernard Rollin, professor de filosofia na Universidade do Estado do Colorado, não pensa que a criação de um clone neandertal venha colocar um conflito ético por si só. O problema reside na forma como esse indivíduo seria tratado. “Não seria adequado colocar alguém numa situação em que possa sentir-se ridículo e, provavelmente, provocar-lhe medo”, afirma. “Devemos também considerar que não se poderá relacionar com pessoas como ele. E isso, dado que os seres humanos são seres sociais, seria extremamente injusto.” Stringer é da mesma opinião: “Iríamos colocá-lo num mundo a que não pertence.” Quando os nean­der­tais desapareceram, ainda não existiam cidades. No seu apogeu demográfico, talvez atingissem os dez mil indivíduos, dispersos por toda a Europa. O nosso clone talvez não possuísse as adaptações biológicas necessárias, quaisquer que elas sejam, para poder enfrentar uma maior densidade populacional.

Todavia, nem todos consideram que seriam diferentes ao ponto de serem automaticamente marginalizados: “Estou convencido de que um neandertal, se fosse criado no seio de uma família humana moderna, se comportaria como qualquer pessoa”, afirma Trenton Holliday, paleoantropólogo da Universidade de Tulane, em Nova Orleães. “Poderia falar e fazer tudo o que fazemos.”

“Acho que não se hesitaria em atribuir a esse indivíduo os direitos humanos consagrados nas constituições e nos tratados internacionais”, afirma Lori Andrews, professora da Faculdade de Direito Chicago-Kent. Não existe uma definição jurídica sobre o que é uma pessoa, embora haja discussões entre os académicos sobre situações que envolvem engenharia genética. “Este seria um caso de modificação de uma espécie. Iria mudar, por conseguinte, a forma como surge uma nova geração”, reflecte Andrews. Até que ponto se teria de alterar o nosso genoma para que um indivíduo criado a partir dele deixasse de ser considerado humano?

Nos Estados Unidos, a jurisprudência parece estar do lado dos direitos dos neandertais. Em 1997, Stuart Newman, professor de biologia da Escola de Medicina de Nova Iorque, procurou obter uma patente para o genoma de um híbrido de chimpanzé e ser humano com o objectivo de evitar que alguém se lembrasse de criar semelhante ser. Todavia, o departamento de patentes rejeitou o pedido, argumentando que violaria a 13.ª emenda da Constituição norte-americana, que proibe a escravatura: a decisão implica que a criatura seria protegida pelos direitos humanos, tal como aconteceria, com maior razão ainda, no caso de um neandertal.

Lori Andrews chega a uma simples conclusão: “Se beneficiasse de protecção jurídica, poderia invocar o direito de não querer ser alvo de investigação, pelo que o próprio motivo para a sua criação se tornaria uma privação dos respectivos direitos.” Isso para não falar da própria legitimidade da clonagem humana (teoricamente proibida em alguns países e autorizada noutros), ou na delicada questão das patentes comerciais dos genes.

Seja como for, a oportunidade de observar um neandertal vivo parece, à partida, demasiado sedutora para ser ignorada. A questão é saber se o que aprenderíamos, para além de satisfazer a nossa curiosidade, seria mais importante do que o nosso sentido de compaixão. Haveria suficientes vantagens científicas para correr todos os riscos? “Claro que gostaria de ter um neandertal clonado diante dos olhos, mas entre o meu desejo de vê-lo e a escassa informação que obteríamos, não creio que valesse a pena”, opina o paleoantropólogo Trenton Holliday. Outro colega, Jean-Jacques Hublin, é ainda mais duro: “Não somos doutores Frankenstein que manipulam genes humanos apenas para ver como funcionam.” O geneticista James Noonan está de acordo: “Se a experiência se revelar um êxito e conseguir criar um neandertal que fale, violou-se todas as normas éticas. No caso de fracassar... perde-se em qualquer dos casos.”

Outros especialistas argumentam que podem existir circunstâncias que justifiquem a clonagem. “Se pudéssemos, realmente, consegui-lo e soubéssemos que estávamos a fazê-lo bem, então sou a favor”, indica Bruce Lahn, geneticista da Universidade de Chicago. “De qualquer modo, não pretendo minimizar o problema do indivíduo viver num meio onde talvez não se consiga encaixar. Se também pudéssemos proporcionar-lhe um habitat e ressuscitar um punhado de companheiros, as coisas seriam diferentes.”

“Podemos aprender muito mais com um nean­dertal adulto vivo do que através de culturas celulares”, diz Church. “No entanto, seria necessário estipular acordos para estabelecer um lugar ele pudesse viver como quisesse”, acrescenta. O clone também deveria poder contar com um grupo social, o que implica criar congéneres, uma colónia inteira. Na opinião de Church, estudar esses neandertais, com o seu consentimento, abriria a possibilidade de curar doenças e salvar vidas. Além disso, os cérebros conformados de forma distinta poderiam proporcionar diferentes perspectivas para a resolução de um problema. É também possível que expandissem a diversidade genética humana, contribuindo para proteger o nosso género de uma futura extinção. “Dizer simplesmente não, não fazer nada, é uma decisão muito arriscada”, resume.

John Hawks acha que vão cair as barreiras que impedem a clonagem do nosso parente. “Temos a intenção de ressuscitar o mamute. A oposição a fazermos o mesmo com um neandertal também irá dissipar-se com o tempo.” Não considera que seja um comportamento científico ético, mas recorda que há sempre pessoas dispostas a infringir as normas. “Ainda vamos ver um neandertal clonado; estou convencido disso”, vaticina.


Pálidos e ruivos
Há 49 mil anos, foram assassinados onze neandertais nas Astúrias (Espanha). A superfície dos ossos mostrava cortes, indício de que tinham sido descarnados com utensílios de pedra. A cerca de 200 metros, no interior da caverna de El Sidron, uma equipa de investigadores que incluía Carles Lalueza-Fox, da Universidade de Barcelona, recuperou 1700 restos ósseos do festim canibal. Grande parte do que se conhece da genética neandertal provém desses vestígios.

Lalueza-Fox não pensa sequenciar o genoma inteiro dos indivíduos encontrados em El Sidrón. “Apenas escolho os genes que estejam, de algum modo, relacionados com a personalidade”, explica. Até agora, o seu trabalho mostrou que possuem uma variante única do gene responsável pela pele pálida e pelo cabelo avermelhado. Neste aspecto, eram diferentes dos seres humanos.

O paleogeneticista analisou também os grupos sanguíneos de dois neandertais e descobriu que eram ambos de tipo O. Verificou, igualmente, que partilham com a nossa espécie uma variante do gene FOXP2, relacionada com a capacidade de aquisição de linguagem. Isso sugere que os chacinados de EL Sidron falavam, provavelmente, a sua própria língua.



A voz dos genes
Os genomas humano e neandertal são idênticos em 99,84%. Exemplos dos poucos genes que nos distinguem.

RPTN. Fabrica a proteína repetina (pele, glândulas sudoríferas, raiz do cabelo e papilas gustativas).

TRPMI. Relacionado com a melastatina, que intervém na pigmentação da pele.

SPAG17. Relacionado com o movimento dos espermatozóides.

THADA. Diabetes de tipo 2.

DYRK1A. Síndroma de Down.

AUTS2. Desenvolvimento neuronal (relacionado com o autismo?).

ACCN1 e CADP2. Autismo?

NRG3. Esquizofrenia?

RUNX2 (CBFA1). Displasia cleidocraniana (malformações no crânio, na caixa torácica, nas clavículas e na dentição).



Mestiçagens no Paleolítico

Quando o Homo sapiens começou a abandonar África, há 80 mil a 50 mil anos, a nossa espécie manteve contacto carnal e procriou, durante um breve período, com o Homo neanderthalensis. É esta a conclusão mais interessante do primeiro esboço do genoma neandertal, elaborado por uma equipa internacional de investigadores sob a direcção do biólogo sueco Svante Pääbo. A hibridação, finalmente comprovada após anos de controvérsia que teve o seu epicentro no “menino do Lapedo”, o esqueleto descoberto perto de Leiria, teve como consequência o facto de entre um e quatro por cento dos genes dos humanos modernos serem provenientes do hominídeo extinto.

O intercâmbio terá provavelmente ocorrido no Médio Oriente, antes de a humanidade se dispersar pela Europa e pela Ásia. A hipótese baseia-se no facto de o genoma dos actuais africanos não conter vestígios do cruzamento. De acordo com Pääbo, “poderemos, pela primeira vez, identificar características genéticas que nos diferenciam dos restantes organismos, incluindo os nossos parentes evolutivos mais próximos”. A sequenciação, que já inclui 60% do ADN neandertal, tem sido comparada com os genomas de um chimpanzé e de cinco pessoas provenientes de África, China, França e Papuásia-Nova Guiné.

SuperInteressante 
Z.Z.

Notícia - O passo em falso de Stephen Jay Gould


Artigo põe em causa ensaio do célebre especialista em evolução norte-americano sobre como preconceitos afectam a ciência.

Stephen Jay Gould, o famoso cientista que se distinguiu tanto pelo estudo da evolução como pela sua defesa frente aos ataques da direita fundamentalista americana, terá sido vítima dos preconceitos que ele próprio denunciou num célebre artigo na Science e num ainda mais célebre ensaio, no livro A Falsa Medida do Homem (Quasi).

Tudo isto tem a ver com um cientista do século XIX, Samuel Morton, que reuniu uma colecção única de 1000 crânios, a inteligência e o racismo. E, claro, a integridade científica.

Gould, que morreu em 2002, questionou a integridade científica de Morton, acusando-o de ter, subtilmente - inconscientemente -, manipulado as medições que fez da capacidade craniana dos homens brancos para demonstrar que estes seriam os mais inteligentes. Isto para demonstrar que a raça branca - e o seu expoente, o homem branco - era a superior. A seguir vinham os asiáticos, os índios americanos e, no fim, os africanos.

Na altura em que Morton fez as suas experiências (a década de 1830, ainda antes da publicação de A Origem das Espécies por Charles Darwin, em 1859), quem era contra a abolição da escravatura defendia que a Humanidade não era una, mas antes que cada raça tinha sido criada em momentos distintos por Deus.

Mas um artigo publicado este mês na revista científica Public Library of Science - Biology (PLOS), acaba por pôr também em causa a integridade científica de Stephen Jay Gould - não preto no branco, mas é o que se pode aferir das conclusões dos cientistas que reconstituíram as experiências de Morton e chegaram à conclusão de que ele não terá manipulado, nem inconscientemente, as suas medições da capacidade craniana, feitas com sementes de mostarda, como dizia Gould.

E, pelo contrário, encontram indícios de que Gould é que terá sido vítima dos seus preconceitos - ou desejo de demonstrar como o racismo não tem bases científicas -, o que o levou a tratar os dados de uma forma discutível. Não o acusam de fraude no artigo, mas em entrevistas dadas a propósito do seu trabalho alguns membros da equipa têm cruzado essa linha vermelha.

Morton, um médico de Filadélfia, como bom cientista, tentou substituir a especulação por factos e medições, usando a sua colecção impressionante de crânios, representando todos os grupos raciais humanos. Mas, de acordo com a crítica de Gould - que foi ao mesmo tempo biólogo, paleontólogo, historiador das ciências, ensaísta e divulgador de ciência e pensador sobre a teoria da evolução -, o trabalho de Morton é exemplar para ilustrar como "artimanhas inconscientes ou mal percebidas são provavelmente endémicas na ciência, pois os cientistas são seres humanos enraizados em contextos culturais, não autómatos que se dirigem para verdades externas", escreveu na Science, em 1978.

Gould tornou-se uma figura pública com uma enorme projecção - uma espécie de Carl Sagan para a evolução, embora tivesse algumas ideias polémicas. Mas, em termos de grande público, tornou-se uma figura incontornável, nos Estados Unidos e não só. Dele esperava-se um juízo acertado.

Mas o que a equipa coordenada por Ralph Holloway diz é que Gould, que nunca foi ele próprio repetir as medições de Morton, apenas analisou as suas notas em papel, estava errado quando afirmou que Morton foi influenciado subconscientemente pelos seus preconceitos raciais (compactando as sementes de mostarda nos crânios dos homens brancos, para caberem mais). A equipa voltou a medir 308 dos 670 crânios estudados por Morton, guardados no Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Pensilvânia em Filadélfia, e não encontrou nenhum desvio estatístico significativo na direcção apontada por Gould. Na verdade, as únicas excepções foram sete crânios, e três deles até sobreestimavam a capacidade de três crânios egípcios. "Estes resultados tornam falsa a afirmação de que Morton mediu mal os crânios com base nos seus preconceitos", escreve a equipa na PLOS de 7 de Junho.Gould acusa ainda Morton de ter usado vários subterfúgios, como ter dividido os dados em subgrupos e ter amalgamado outras populações e não ter fornecido dados sobre isso. A equipa descobriu que Gould fez algo semelhante, relativamente aos crânios de nativos americanos: excluiu 34 de uma amostra de 144. Se forem usados os dados todos, com o método de cálculo usado por Gould, escreve a equipa, a média das dimensões cranianas da população de nativos americanos é ligeiramente menor do que usando o método de Morton.

"Estes elementos do trabalho de Gould são surpreendentes", disse ao jornal The New York Times Jason Lewis, da Universidade de Stanford (EUA), o principal autor do trabalho agora publicado. "Não consigo dizer se foram deliberados." No artigo, a equipa escreve: "Ironicamente, a própria análise do trabalho de Morton é provavelmente o melhor exemplo de como um preconceito influencia resultados."

Não é a primeira vez que o trabalho de Stephen Jay Gould sobre Morton é posto em causa. John S. Michael, um estudante universitário da Universidade da Pensilvânia, publicou um estudo em 1988, em que concluía que os resultados de Morton eram "razoavelmente precisos". A sua crítica não vingou: "Não é inteiramente evidente que se deva preferir as medições de um estudante às de um paleontólogo profissional", escreveu o filósofo da ciência Philip Kitcher, da Universidade de Colúmbia (Nova Iorque), recorda o New York Times.

Hoje, Philip Kitcher diz que Gould provavelmente se defenderia com brilho. "Ele não sai disto como um mau carácter, mas como alguém que comete erros." Ian Tattersall, conservador do Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque, que conheceu Gould, também não duvida de que ele "teria uma resposta pronta". Mas sublinha que Stephen Jay Gould provou mesmo aquilo que queria demonstrar: que a ciência é susceptível a preconceitos inconscientes.

Notícia - O "Homo sapiens" terá começado a espalhar-se pelo mundo muito mais cedo, há 125 mil anos

E se, há uns 125 mil anos, muitas dezenas de milénios antes de se lançarem à conquista da Europa e do resto do mundo, vindos do seu berço africano, os primeiros humanos modernos tivessem começado por atravessar um estreito braço de mar para se instalarem em terras que hoje fazem parte dos Emirados Árabes Unidos? Uma equipa internacional de arqueólogos, liderada por Hans-Peter Uerpmann, da Universidade Eberhard Karls de Tubingen, sugere precisamente isso, com base em escavações realizadas na localidade de Jebel Faya, a uns 50 quilómetros do Golfo Pérsico. Os seus resultados são publicados sexta-feira na revista "Science".

Estes machados encontrados na Península Arábica têm 125 mil anos e levaram os cientistas a uma nova hipótese (Universidade de Tübingen)

O debate sobre como e quando os primeiros homens modernos emigraram de África e se espalharam pelo mundo vem de longe. Há quem diga que houve uma única vaga de migração e quem diga que houve várias. Mas seja como for, os dados conhecidos até aqui indicavam que o êxodo tinha acontecido há mais ou menos 60 mil anos. Quanto à rota seguida por aqueles emigrantes até a Europa e Ásia, também aí havia consenso: através do Vale do Nilo e do Médio Oriente.

O que os cientistas encontraram agora na Península Arábica são ferramentas que, segundo eles foram fabricadas com tecnologias semelhantes às utilizadas pelas populações de "Homo sapiens" que viviam no Leste de África, mas diferentes das tecnologias originárias do Médio Oriente. Isso não seria problemático se elas tivessem menos de 60 mil anos de idade. Mas acontece que, quando foram datadas (pela técnica dita de luminescência), revelaram ter... 125 mil anos.

Ou seja, estas ferramentas — pequenos machados e lâminas de pedra, entre outros — parecem contar uma história diferente. Uma história de emigração directa, há muito mais tempo, de África para a Arábia — e daí, dizem os cientistas, para o Crescente Fértil e para a Índia. Porém, nem todos os especialistas concordam com esta interpretação.

“Os humanos ‘anatomicamente modernos’ — como nós — emergiram em África há uns 200 mil anos e a seguir povoaram o resto do mundo”, diz em comunicado Simon Armitage, da Universidade de Londres e co-autor do trabalho. “Os nossos resultados deveriam estimular uma reavaliação da maneira como nós, os humanos modernos, nos tornamos uma espécie global.”

Os cientistas analisaram ainda as condições climáticas que reinavam na região há uns 130 mil anos, durante o último período interglaciar, para ver se a passagem de África para a Arábia teria sido fácil. E de facto, concluíram que o estreito de Bab al-Mandab, que separa a Península Arábica do Corno de África, tinha naquela altura pouca água devido ao baixo nível do mar, permitindo a passagem em segurança sem grandes problemas.

E mais: a Península Arábica era então uma região muito mais húmida, com vegetação abundante, com lagos e rios — muito mais acolhedora do que hoje. “Em Jebel Faya”, salienta Armitage, “a datação revela uma visão fascinante, na qual humanos modernos emigraram de África muito mais cedo do que se pensava, ajudados pelas flutuações globais do nível do mar e pelas mudanças climáticas.”

Uma voz dissonante

Num artigo jornalístico que acompanha na revista "Science" a publicação dos resultados da datação das ferramentas de Jebel Faya, surge uma voz dissonante entre os comentários entusiastas de vários especialistas. Paul Mellars, arqueólogo da Universidade de Cambridge, diz que, quanto a ele, apesar da descoberta das ferramentas ser importante e a datação bem feita, as conclusões estão erradas.

“Não há qualquer indício aqui que sugira que foram feitas por humanos modernos, nem de que eles vinham de África”, declara. E salienta que, ao contrário do que afirmam os autores da descoberta, não fica excluída de forma convincente a hipótese de se tratar de ferramentas fabricadas pelos Neandertais — ou até pelo "Homo erectus", antepassado dos humanos modernos que se sabe ter emigrado de África para Ásia há cerca de 1,8 milhões de anos.

Hans-Peter Uerpmann, um dos líderes da equipa que fez as escavações em Jebel Faya, concede que para “poder ter a certeza absoluta” de que as ferramentas foram fabricadas pelo Homo sapiens, vai ser preciso encontrar ossos fossilizados. Várias equipas de arqueólogos já declararam que tencionam lançar-se nessa procura.

Notícia - O ataque das enguias eléctricas a cavalos relatado por Humboldt há mais de 200 anos é mesmo possível


Na sua viagem à Venezuela, o famoso naturalista Alexander von Humboldt viu enguias eléctricas a saltarem da água para atacar cavalos com descargas eléctricas poderosas. Apesar de muito citada, havia dúvidas sobre a veracidade desta descrição. Agora, um cientista observou este tipo de comportamento.

Seriam mais de 30 cavalos num lago repleto de enguias eléctricas, no início de 1800, na Venezuela. Segundo as descrições do naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), as enguias nadaram em direcção aos cavalos, saltaram para cima deles e atacaram-nos com descargas eléctricas. O lago estava rodeado de homens que impediram os cavalos de fugir. Podemos imaginar a agitação nas águas. Houve cavalos que tombaram com as descargas eléctricas e foram pisados pelos outros. Dois morreram. Mas Humboldt conseguiu retirar do lago cinco enguias para fazer experiências, o grande objectivo de todo o aparato.

Publicada em 1807, a descrição do sucedido foi suficientemente forte para ter direito a uma ilustração. Mas, apesar de o episódio ter sido recuperado várias vezes por outros cientistas, o relato foi ganhando a aura de lenda. Não houve outras descrições de comportamentos das enguias eléctricas semelhantes ao da história de Humboldt. Os cientistas foram duvidando da veracidade das palavras “poeticamente transfiguradas” do naturalista, como se escreve num artigo de 1947.


“O comportamento agressivo das enguias, tomando a ofensiva contra os cavalos, parece a parte mais questionável e fantástica da história”, refere o biólogo Kenneth Catania, da Universidade Vanderbilt, em Nashville, nos Estados Unidos, num artigo publicado nesta segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, que reaviva este episódio, dando-lhe novos contornos científicos. É que Kenneth Catania observou pela primeira vez em laboratório este comportamento das enguias eléctricas a saltarem contra objectos aplicando-lhes descargas eléctricas. E quanto mais alto o salto, mais forte era a descarga, descreve o cientista no artigo. Só podemos adivinhar o sofrimento daqueles cavalos, há mais de 200 anos.

A viagem histórica de Alexander von Humboldt, em que recolheu inúmeros animais e plantas, iria levá-lo mais tarde a cerca de 400 metros do topo do Chimborazo, um vulcão extinto no Equador, que faz parte da cordilheira dos Andes e atinge a respeitável altitude de 6310 metros. A escalada e todas as observações anteriores tiveram uma profunda influência na visão de Humboldt da natureza, levando-o à formulação do conceito de zonas de vegetação do globo, diferentes entre si de acordo com a latitude e a altitude onde se encontram. Esta relação nunca tinha sido feita e obrigou a uma nova abordagem holística da natureza, que lançou as raízes da ecologia e da conservação da natureza.

Em 1800, então com 31 anos, Humboldt ainda estava longe de ter o reconhecimento mundial que iria receber mais tarde, influenciando disciplinas como a Biologia e a Geografia, áreas como a literatura e as artes plásticas, e nomes como o evolucionista britânico Charles Darwin, o escritor americano Henry David Thoreau, o biólogo alemão Ernst Haeckel e Johann Wolfgang von Goethe (muito amigo de Humboldt, diz-se que o escritor alemão se inspirou nele e na sua sede de conhecimento para criar o académico Heinrich Faust, a personagem central de Fausto). Mas foi o espírito desde sempre curioso de Humboldt que desencadeou o episódio das enguias eléctricas, na povoação comercial de Calabozo, na Venezuela.

“Quando os habitantes locais contaram a Humboldt que muitos dos lagos pouco profundos da área estavam repletos de enguias eléctricas, mal conseguia acreditar na sua sorte. Desde as suas experiências com a electricidade animal na Alemanha, Humboldt sempre quisera examinar um desses extraordinários peixes. Ouvira estranhas histórias acerca de criaturas de metro e meio que podiam descarregar choques eléctricos de mais de 600 volts”, conta-se em A Invenção da Natureza – As Aventuras de Alexander von Humboldt, o Herói Esquecido da Ciência, da escritora Andrea Wulf, editado recentemente em Portugal pelo Círculo de Leitores.

A obra de Andrea Wulf, de 2015, é uma biografia que resgata as memórias do alemão, cartografando não só a sua vida e as suas viagens, mas também as suas relações e a influência que teve noutras personagens importantes do século XIX. O caso das enguias eléctricas situa-se na secção da viagem do naturalista pelas Américas entre 1799 e 1804. Na altura, a dificuldade de apanhar as enguias, conhecidas pelos seus choques eléctricos, levou os habitantes a recorrerem aos cavalos para esgotar a energia das enguias. “A intensidade dos choques eléctricos ia diminuindo e as enguias enfraquecidas fugiam para a lama, de onde Humboldt as retirava com paus”, conta-se no livro.

“A primeira vez que li a história de Humboldt pensei que era completamente bizarra”, diz Kenneth Catania, citado num comunicado da Universidade Vanderbilt. “Por que é que as enguias iriam atacar os cavalos, em vez de nadarem em fuga?” O investigador trabalha com estes peixes, conhecidos por terem no ventre órgãos que lançam descargas eléctricas. Normalmente, estas descargas são usadas para imobilizar as presas dentro de água como se tratasse de uma arma Taser. Mas o ataque aos cavalos é um comportamento de defesa.

A curiosidade do investigador foi aguçada quando observou a reacção das enguias eléctricas, da espécie Electrophorus electricus, quando as apanhava num tanque. O cientista usava uma rede com aro e cabo de metal, capaz de conduzir electricidade, e calçava luvas de borracha para se proteger de possíveis choques eléctricos. “De vez em quando, a enguia deixava de tentar fugir e atacava a rede saltando para fora de água enquanto pressionava o ‘queixo’ no cabo da rede, ao mesmo tempo que gerava uma série de choques eléctricos de alta voltagem”, explica o comunicado.

Perante este fenómeno, Kenneth Catania tentou compreender o que estava a acontecer. Para isso, usou vários objectos que submergia nos tanques e mediu as descargas eléctricas. O investigador descobriu que as enguias só costumavam reagir a objectos que conduzem electricidade – uma vantagem adaptativa, já que na natureza os animais conduzem electricidade – e observou que quanto menos água havia no tanque, menos hipótese as enguias tinham de fugir e mais atacavam.

Além disso, o ataque seguia um comportamento exacto. O objecto tinha de estar submerso. A enguia erguia-se da água e ia tocando no objecto a alturas cada vez maiores. Ao medir a descarga, o cientista verificou que quanto mais alto a enguia tocava no objecto, mais distante estava da superfície da água, e por isso mais forte era a descarga. “Isto permite às enguias darem um choque com uma quantidade máxima de energia a animais terrestres parcialmente submersos que invadem o seu território”, explica o cientista.

Um dos objectos usados foi uma cara artificial de crocodilo, na qual foi instalada uma rede eléctrica de luzes LED à sua superfície. Sempre que a enguia dava uma descarga eléctrica, as luzes acendiam-se. “Quando se vê as luzes LED a acenderem-se, pode-se pensar nelas como as terminações de nervos da dor a serem estimulados. Isto dá uma ideia de quão efectivos os ataques podem ser”, refere Kenneth Catania.

“Muito provavelmente as enguias eléctricas usam um ataque agressivo para se defenderem, porque não podem fugir”, lê-se no artigo. Para o investigador, esta descoberta corrobora as observações feitas por Alexander von Humboldt. “Os eventos ocorreram para o final da época seca, e as enguias estavam presas numa bacia lamacenta”, explica o artigo. “Parece razoável sugerir que Humboldt observou um comportamento semelhante.”

Com as enguias nas mãos, Humboldt e o seu parceiro de viagem, o botânico francês Aimé Bonpland (1773-1858), testaram os choques eléctricos dados por estes peixes das mais variadas formas, sendo eles próprios alvo dos ataques. Como tudo o que era alvo de atenção do naturalista, também este episódio foi integrado na sua visão sobre a natureza. “Ao observar o encontro medonho entre as enguias e os cavalos, Humboldt reflectiu nas forças que, de formas diversas, criavam um relâmpago, ligavam o metal ao metal e moviam as agulhas das bússolas”, lê-se na obra de Andrea Wulf. “Como acontecia tantas vezes, começava por um pormenor ou uma observação e, em seguida, voltava-se para um contexto mais alargado. Tudo ‘flui a partir de uma fonte’, escreveu, ‘e tudo se funde num poder eterno e omnipresente’.”

Notícia retirada daqui - Nicolau Ferreira