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segunda-feira, 20 de março de 2017

Notícia - Safari na praia


Com a abertura da época balnear, todos os caminhos vão dar ao litoral. Todavia, uma ida à praia pode ter outros motivos de interesse para além dos banhos de mar e de sol. O biólogo Jorge Nunes convida-nos a descobrir a bicharada da zona entre marés e a passar um dia diferente.

A palavra "safari" remete-nos de imediato para as ambiências de África e para a observação dos grandes mamíferos que aí habitam. No entanto, o convite não é para viajar até lugares exóticos, mas para olhar de forma diferente a "sua" praia, aquela que julga conhecer como a palma da sua mão. A aventura não oferece a adrenalina de uma expedição na savana africana, mas será com toda a certeza uma forma interessante de combater o tédio das longas horas de praia e permitirá jornadas inesquecíveis de observação da vida selvagem.

Sem nos darmos conta, partilhamos as praias portuguesas com um sem-número de organismos curiosos. Mesmo durante a agitação das épocas balneares, quando os areais se enchem de veraneantes, muitos dos animais que aí habitam prosseguem as suas actividades diárias quase indiferentes à presença humana. Outros, mais espantadiços, tentam manter-se afastados dos olhares indiscretos, como acontece, por exemplo, com as aves marinhas que visitam os areais essencialmente ao amanhecer e ao entardecer.

As pequenas dimensões e os comportamentos recatados fazem que muitos desses seres vivos sejam ignorados pelas pessoas que coabitam com eles durante o Verão. No entanto, basta um pequeno passeio pela praia, um olhar atento e alguma perseverança para começar a descortiná-los. Caracterizam-se pela multiplicidade de cores e a diversidade de formas, que indiciam fisiologias invulgares e adaptações especiais que lhes permitem sobreviver na zona de fronteira entre o mar e a terra. Embora pareçam insignificantes, alguns organismos que habitam a zona das marés são criaturas singulares, pois vivem num ambiente extremamente hostil, que fica parte do dia submerso e outra parte emerso ao ritmo das marés. São verdadeiros sobreviventes que vivem fustigados pela força das ondas, pelas variações bruscas da salinidade e da temperatura e pelo risco eminente de desidratação.

Mesmo os leigos em ecologia marinha ficam espantados com a diversidade de organismos que é possível encontrar numa singela poça de água deixada a descoberto durante a baixa-mar. Apesar da sua aparente simplicidade, estes seres vivos, quais liliputianos, são um desafio à nossa curiosidade. O seu pequeno mundo imita na perfeição os grandes ecossistemas da Terra, sendo possível encontrar as relações entre os vários seres vivos e destes com o meio ambiente, tal como numa enorme floresta ou num extenso oceano.

Os adultos mais reticentes em renunciar à preguiça da toalha e do guarda-sol para partir à descoberta do outro lado da praia rapidamente serão contagiados pelo entusiasmo e deslumbramento das crianças, que rejubilam com cada novo bicho avistado e fotografado. Dado que a água do mar é altamente corrosiva para os equipamentos electrónicos, basta ter à mão um telemóvel com câmara fotográfica para fazer o registo fotográfico da bicharada. Ao fim de algum tempo, já é possível começar a compor um álbum fotográfico da fauna e flora da costa que lhe permitirá partilhar com os amigos as suas inauditas aventuras na praia.

A diversidade faunística que pode ser observada numa ida à praia justifica que se leve na mochila, junto com as revistas, os livros de bolso ou os jornais, um guia de campo que possa auxiliar na identificação dos seres vivos que venham a ser encontrados. As deslumbrantes fotografias de qualquer "Guia de Campo do Litoral" não deixarão ninguém indiferente e serão certamente um motivo acrescido para despertar a curiosidade de miúdos e graúdos pela vida à beira-mar, e servirão de mote para aventuras palpitantes pelos areais. Afinal, um passeio pela praia pode ser tão educativo como uma aula de ciências naturais.

O tipo de praia que se visita determina a variedade de organismos que poderão ser descobertos, dado que as praias rochosas e arenosas, devido às suas distintas características edafoclimáticas, revelam uma fauna e uma flora bastante distintas. Em geral, as praias rochosas, embora sejam varridas pelo perpétuo movimento das ondas e fustigadas pelas tempestuosas brisas marítimas, oferecem uma superfície dura que facilita a fixação de algas, plantas e animais, possibilitando uma biodiversidade elevada, que encontra refúgio seguro nas múltiplas saliências, fendas, fissuras e grutas oferecidas pelas rochas.

Já as praias de areia, como constituem substratos instáveis (sujeitos às permanentes alterações provocadas pelo movimento da água do mar e pela força do vento), acolhem uma flora e uma fauna aquáticas relativamente mais pobres: vermes poliquetas, pequenos crustáceos e alguns bivalves a que se juntam, esporadicamente, insectos, aves e mamíferos vindos da zona terrestre.

Embora a variedade de seres vivos aquáticos seja menor nas praias arenosas, não faltam motivos de interesse para o naturalista amador. São os locais ideais para procurar conchas trazidas pela ondulação e para investigar os tufos de algas (arrancados nos substratos rochosos e arrastados pelas correntes), que servem de abrigo a pequenos burriés, aos casa-alugada (minúsculos caranguejos que se refugiam no interior de pequenos búzios) e às curiosas pulgas-do-mar. Os despojos trazidos pelo mar (sejam de origem natural ou de proveniência humana) podem esconder ainda outras surpresas, como ovos e conchas de chocos, cápsulas dos ovos de pata-roxa (tubarão costeiro que vive essencialmente sobre fundos de areia) ou de raia, conchas de bivalves e caracóis, pinças e carapaças de crustáceos, ouriços-do-mar, peixes mortos e até, em situações particulares, cadáveres de tartarugas e mamíferos marinhos.

Em muitas praias arenosas, é comum encontrar afloramentos rochosos, quer salpicando os areais, quer constituindo arribas e falésias que delimitam as mantas de areia. Esses locais constituem habitualmente verdadeiras ilhas de diversidade fauno-florística, devendo ser os principais refúgios a explorar.

Quem chegar cedo à praia ou puder ficar por lá até ao entardecer tem boas hipóteses de observar ainda diversas aves aquáticas (gaivotas, pilritos, borrelhos, ostraceiros e garças) que aproveitam esses períodos de acalmia para de alimentarem à beira-mar. Nas praias que se localizam nas imediações de estuários ou zonas húmidas, como lagoas costeiras ou desembocaduras de pequenos rios ou ribeiros, a observação pode realizar-se ao longo de todo o dia.

As praias rochosas, nomeadamente as mais abrigadas, merecem destaque por ostentarem uma elevada diversidade de espécies, num espaço relativamente limitado. São bastante comuns os caranguejos, as estrelas, os ouriços, os camarões e vários moluscos (mexilhões, lapas, burriés, caramujos, etc.). Durante a baixa-mar, os moluscos refugiam-se nas suas conchas, que fecham hermeticamente (como os mexilhões) ou fazem aderir às rochas (como as lapas), retendo a água essencial ao funcionamento das suas brânquias. Quanto aos crustáceos, como os caranguejos e as sapateiras, protegem-se nas fendas húmidas das rochas, que partilham geralmente com pequenos polvos. Já os peixes, os camarões, as anémonas, as estrelas e os ouriços, devido à sua fragilidade e à grande dependência hídrica, escolhem as poças de água, onde mantêm a sua actividade habitual. Apesar das difíceis condições de vida nas praias rochosas, devido ao rebentamento constante das ondas, quase todas as rochas estão usualmente cobertas por uma miríade de organismos.

Tal como acontece com um prédio dividido em andares, onde vivem as diversas famílias, também o litoral rochoso se apresenta organizado em zonas ou andares. Existem assim conjuntos de organismos característicos que correspondem a determinadas condições ecológicas, sensivelmente constantes em função da distância ao nível do mar, e que permitem definir o espaço correspondente a cada zona. O litoral pode assim ser dividido em quatro andares diferentes: o supralitoral, o mediolitoral, o infralitoral e o circalitoral.

O andar supralitoral está apenas sujeito aos salpicos das ondas, sendo uma zona que raramente é coberta pela água, excepto nas marés vivas (mas sempre por pouco tempo). Esta zona é caracterizada pela existência de um pequeno caracol da espécie Melaraphe neritoides, que se encontra em grandes quantidades principalmente nas fissuras das rochas. Também é comum encontrar-se um líquen negro (Verrucaria maura) com aspecto de alcatrão derramado na rocha. Em substrato arenoso, o povoamento marinho característico resume-se à ocorrência das vulgares pulgas-do-mar (Talitrus saltator).

O mediolitoral corresponde à zona entre marés (também designada por "zona intertidal" ou "eulitoral"), sendo descoberta e coberta pelo mar duas vezes por dia. Aqui, a distribuição dos organismos faz-se em função do hidrodinamismo, ou seja, é influenciada pelo constante movimento da água e dos seus efeitos (intercalando períodos de imersão e de emersão). Trata-se de ecossistemas muito ricos, com uma fauna e flora extremamente diversificadas. São comuns os densos povoamentos de mexilhões, algas calcárias e castanhas (como a bodelha), lapas e crustáceos cirrípides (como cracas e balanos).

É nesta zona que abundam as poças de água que se formam com a descida da maré, geralmente forradas por algas calcárias e ouriços-do-mar. Dado que estão permanentemente repletas de água, constituem enclaves do infralitoral, pelo facto de as condições ambientais serem semelhantes às desse andar. As poças de maré, como também são conhecidas, constituem verdadeiros paraísos visuais, onde as algas, as lapas, os mexilhões, as anémonas, os ouriços, as estrelas, os camarões e vários pequenos peixes fazem as delícias dos mais curiosos.

O infralitoral vai desde o limite inferior da baixa-mar até cerca de 24 metros de profundidade (o que em Portugal corresponde grosso modo à máxima profundidade até onde podem encontrar-se as algas fotófilas, isto é, as que necessitam de luz), sendo por isso acessível somente aos mergulhadores. Trata-se de uma zona geralmente forrada por várias espécies de algas e com uma enorme diversidade de animais marinhos (peixes, anémonas, camarões, estrelas, polvos, esponjas, entre muitos outros) que só estão ao alcance dos olhos dos praticantes de mergulho em apneia (mergulho superficial com máscara aquática ou a pequena profundidade sustendo a respiração) ou com escafandro autónomo (pode saber mais sobre a modalidade em http//www.fpas.pt ou em http://www.cpas.pt). Vale a pena colocar a máscara, o tubo respirador e as barbatanas para espreitar esse admirável mundo novo.

Conhecer para proteger

Uma ida à praia poderá ser uma oportunidade sublime para sensibilizar os mais novos para a riqueza do património natural do litoral e para lhes mostrar ainda como preservar a natureza. Regras básicas de cidadania ambiental (não apanhar plantas ou animais, não colocar organismos aquáticos em baldes ou sacos de plástico para além do tempo necessário para a sua observação, não levar para casa os seres vivos, dado que morrerão rapidamente fora dos seus habitats naturais, não deitar lixo para o chão) serão comportamentos facilmente apreendidos pelas crianças e jovens, especialmente se o exemplo lhes for dado pelos adultos. É importante ensinar-lhes que na praia devem deixar apenas as suas pegadas e que no regresso a casa só precisam de levar as fotografias para mais tarde recordar.

Embora o litoral seja um mundo único e fascinante, onde habitam seres muito curiosos e complexos, também é um lugar cheio de problemas. A sua destruição tem geralmente causas humanas tão diversificadas como a poluição, a construção civil e a urbanização desregrada, a pesca profissional e desportiva, a extracção de areia, a destruição das dunas e o turismo massificado, entre outras.

Convém não esquecer que as praias estão sujeitas à acção destrutiva dos visitantes, umas vezes em resultado de comportamentos descuidados, outras como consequência da delapidação intencional dos recursos. A principal causa é a procura e apanha de organismos marinhos, como minhocas para isco dos pescadores, perceves, mexilhões, burriés, lapas, ouriços, navalheiras, polvos, etc. À actividade regular dos apanhadores profissionais e desportivos junta-se, durante a época balnear, a acção dos veraneantes e turistas, que muitas vezes recolhem organismos cujo tamanho é muito inferior às dimensões adequadas para apanha e consumo ou pura e simplesmente destroem-nos com o seu pisoteio imprevidente.

Algumas espécies que habitam a beira-mar são raras e podem necessitar de vários anos para atingir o estado adulto, razões que as tornam particularmente vulneráveis a uma recolha exagerada ou a uma destruição descuidada. Por estranho que pareça, muitos seres vivos são pura e simplesmente esmagados pelas pessoas. Os casos mais comuns são o pisoteio dos bancos de mexilhões e da barroeira (ou brueira, como é conhecida em várias regiões da costa portuguesa).

Os "recifes" de barroeira apresentam uma grande beleza devido às suas curiosas formas, que imitam colunas, barreiras e cogumelos. São frágeis estruturas arenosas edificadas por colónias de anelídeos poliquetas da espécie Sabellaria alveolata, que constroem pequenos casulos semelhantes a favos de mel onde se abrigam. As suas inúmeras fendas e galerias oferecem protecção para várias espécies animais, especialmente durante a fase larvar e juvenil, constituindo locais de maternidade e verdadeiros refúgios de biodiversidade marinha. O pisoteio dos veraneantes curiosos que se sentem atraídos pela sua beleza e a cobiça dos pescadores desportivos à cata de isco tornam estas delicadas construções alvos de destruição maciça, em especial durante o Verão.

A exploração do litoral deve fazer-se sempre tendo em conta a menor perturbação dos ecossistemas intertidais e dos organismos que aí habitam. O simples facto de virar as pedras e de não as colocar no mesmo local e na mesma posição poderá originar grandes desequilíbrios nos mundos em miniatura, como são, por exemplo, as poças de maré. Para observar, identificar ou fotografar os organismos não será sequer necessário removê-los do local onde vivem. No entanto, se tal se justificar, o manuseamento dos animais deve ser feito de forma rápida, evitando tocar-lhes com as mãos secas e mantendo-os durante pouco tempo fora de água ou expostos ao sol.

Em circunstância alguma se justifica colocar em risco a vida ou o bem-estar da bicharada. Por isso mesmo, deve evitar-se o uso de instrumentos cortantes e afiados (que são igualmente perigosos para as crianças!) e puxar ou arrancar animais que se agarram firmemente às rochas, como as anémonas e as estrelas-do-mar (infelizmente, muitas pessoas têm o péssimo hábito de secá-las ao sol e levá-las para casa como lembrança). Embora a palavra "safari" também seja sinónimo de "caçada de animais selvagens", não foi essa a intenção do seu uso neste texto. Afinal, nenhuma fotografia ou recordação que leve da praia será mais valiosa do que a vida dos maravilhosos organismos que aí, todos os dias, lutam pela sua sobrevivência.

J.N.

SUPER 148 - Agosto 2010

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