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sábado, 24 de março de 2018

Notícia - E depois de nós?




O avanço imparável do trans-humanismo
Os progressos tecnológicos e científicos vão permitir-nos intervir no corpo para eliminar deficiências congénitas e potenciar capacidades. A humanidade ultrapassa-se a si mesma.

Mais de sessenta cientistas, peritos e “tecno-intelectuais” foram convocados pela Universidade de Harvard (Estados Unidos), no Verão passado, para debater um tema tão transcendental como a capacidade humana para alterar a sua própria evolução. Os presentes expuseram as suas previsões sobre o futuro da ciência e da tecnologia, assim como sobre o impacto destas no fenómeno da trans-humanização. O prolongamento da vida humana, o domínio dos circuitos do cérebro, a robótica, a nanotecnologia, a inteligência artificial e as técnicas para aperfeiçoar a espécie humana foram apenas algumas das ideias que se discutiram na reunião, promovida pela Humanity+, uma ONG conhecida até há pouco tempo sob o nome de World Transhumanist Association.

A Humanity+ é a organização mais representativa do chamado “movimento trans-humanista”, cujos adeptos estão convencidos de que os avanços tecnocientíficos vão permitir modificar ad libitum o corpo e a mente do homem, deixando em segundo plano a evolução biológica. A ideia fundamental é que os seres humanos serão um dia capazes de se redesenharem a si próprios. Desse modo, poderão escolher o tipo de organismo em que pretendem transformar-se: um ciborgue (formado por matéria viva e dispositivos electrónicos), um siliborgue (organismo criado com silício a partir de um ADN artificial), um simborgue (indivíduo reencarnado que reside num meio interligado) ou qualquer outra criatura imaginável que a tecnologia permita congeminar.

Todas essas possíveis configurações parecem estar mais perto do que pensamos, devido à aceleração do conhecimento tecnológico e científico: uma eclosão que foi bap­ti­zada com o nome de “singularidade”. Raymond Kurz­weil, o guru que vaticinou que um com­pu­tador ganharia uma partida de xadrez a um hu­mano, sentenciou que faltam apenas duas ou três décadas para esse momento chegar.

Diz o Antigo Testamento que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Os maias acreditavam que as divindades colheram milho, deram-lhe forma humana e insuflaram-lhe vida. Um antigo mito egípcio conta que Cmun (divindade com cabeça de carneiro) moldava deuses e homens no seu torno de oleiro. As mitologias de diferentes civilizações e culturas deixaram explícito que o homem resultou de um trabalho divino, não humano.

Graças à teoria da evolução, completada nos séculos XVIII e XIX, sabemos que somos produto de milhões de anos de adaptação. Talvez por isso, a convicção de que os seres humanos podem intervir e alterar o seu próprio processo evolutivo já foi considerada “a ideia mais perigosa do mundo”, como assinalou Francis Fukuyama, conhecido politólogo e ensaísta da Universidade Johns Hopkins (Estados Unidos).

As vozes críticas, para deitar mais lenha na fogueira, esclarecem-nos com relatos sobre homens que brincaram aos deuses e tiveram um final triste e exemplar. A ficção literária do dr. Frankenstein, empenhado em ressuscitar a matéria morta, recorda-nos que há experiên­cias que a ciência nunca deveria empreender. E obras de ficção como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, alertam para o modo como os avanços tecnológicos podem voltar-se contra a sociedade se caírem nas mãos de determinados regimes.

Dura oposição
As críticas ao trans-humanismo são em grande número e baseiam-se em diferentes argumentos. O primeiro é que não vamos dispor das tecnologias necessárias para efectuar essas modificações. Porém, Kurzweil, que é um dos mais acérrimos defensores da singularidade, faz questão de recordar a lei de Moo­re, segundo a qual o número de transístores de um chip duplica (mais ou menos) a cada 18 meses. Segundo Kurzweil, essa norma não se aplica apenas aos computadores, mas também a outras tecnologias.

“Quando se iniciou a leitura da sequência do genoma humano, em 1990, os detractores disseram que, devido à velocidade a que se conseguia efectuar a operação, levaria milhares de anos para completar todo o mapa”, assinala, no livro The Singularity Is Near. Em 13 anos, foi possível ler os 3000 milhões de “letras” que integram o nosso ADN.

Kurzweil sublinha que não foi só a velocidade de leitura que aumentou; o custo também diminuiu. O preço para sequenciar cada par de bases (as “letras” genéticas) passou de dez dólares para cerca de dois cêntimos. Essa redução do custo, associada a um crescimento tecnológico quase exponencial, é também aplicável a outras áreas de estudo, como a da exploração da mente humana.

O que impele a filosofia trans-humanista é a erradicação de qualquer forma de sofrimento causado por doenças, pelo envelhecimento ou mesmo pela morte. O objectivo é alcançar as máximas potencialidades em termos de desenvolvimento humano. Porém, nesse caso, o que aconteceria a quem não tivesse acesso aos avanços que permitem um tal desenvolvimento? Por exemplo, os progressos eugenésicos proporcionariam mais privilégios aos poderosos, o que iria criar uma ordem social semelhante à descrita em Admirável Mundo Novo, com castas de indivíduos superiores e inferiores já predestinados antes de nascerem.

Se a evolução tecnológica conseguir impor-se à biológica, se todos os progressos previstos se materializarem, seremos obrigados a redefinir o que é um ser humano. Nas tecnologias do futuro anunciadas pelos trans-humanistas, ainda se vislumbram vestígios de ficção científica, mas há dez anos ninguém teria conseguido prever o que a internet e as tecnologias da comunicação nos iriam trazer e a forma como transformariam a sociedade. Como saber, agora, o que nos espera no futuro? Talvez David Orban tenha a resposta. Vejamos.

Trans-humanista chefe
David Orban (nascido em Budapeste, em 1965) presidiu, até há pouco tempo, à Humanity+, a principal organização que divulga, actual­mente, a filosofia trans-humanista. É também assessor da Universidade da Singularidade (localizada em Silicon Valley, na Califórnia), uma instituição académica que recebe apoio económico da Google e da NASA, entre outros, e que possui cursos sobre as tecnologias mais avançadas.

Este visionário observa o passado para descrever um futuro surpreendente. Orban está firmemente convencido de que um salto tecnológico inédito nos permitirá mudar como espécie, mas irá também contribuir para uma maior justiça social. Por outro lado, não se importa que isso signifique alterar as características que nos definem como Homo sapiens para dar as boas-vindas a uma união estável entre homem e máquina.

O objectivo do trans-humanismo é conseguir construir o ser humano perfeito?
Sim, creio que a perfeição é um ideal que perseguimos, mas, para essa ideia fazer sentido, temos de inseri-la num contexto. Precisamos de entender quais são as condições que nos tornam humanos, em que meio vivemos e que alterações no avanço tecnológico e na compreensão do mundo poderão exercer um impacto na natureza humana e no conjunto da sociedade.

Qual a relação entre a singularidade e o trans-humanismo?
Os dois movimentos e os seus adeptos acreditam que nos espera um futuro radicalmente diferente do passado. Durante o século XX, foi estabelecida a infraestrutura da internet, o que transformou e exerceu um profundo impacto em todas as tecnologias e ramos do conhecimento. Os transportes, as comunicações, a biologia e a medicina foram enormemente influenciados pelo que aconteceu antes.

Nesse caso, que futuro nos espera?
A singularidade diz-nos que vai chegar um ponto de inflexão. Quando pomos água a aquecer, a temperatura aumenta pouco a pouco, de 30 para 40, 50, 70 graus, e podería­mos pensar que essa progressão continuaria indefinidamente. Todavia, sabemos que as coisas não funcionam assim; que algo muito diferente acontece quando a água atinge determinada temperatura, pois deixa de aquecer e começa a ferver para se transformar em vapor. Os adeptos da singularidade não têm dúvidas de que, a partir de um ponto de inflexão, o nível humano será ultrapassado, que a inteligência artificial é possível, que irá estar disponível dentro de poucos anos e que vai mudar as regras do jogo.

Até que ponto se irão alterar essas regras?
A singularidade permitirá que seres humanos e máquinas se unam para formar um novo tipo de organismo híbrido. A ideia é que, tal como nos apercebemos de que se aproxima uma tempestade porque ouvimos os trovões ao longe, também já há sinais dessas mudanças revolucionárias que foi possível começar a interpretar.

Não lhe parece que, no actual estado de desenvolvimento tecnológico, pensar em termos de um organismo híbrido, metade máquina, metade humano, soa mais a ficção do que a rea­li­dade previsível?
Arthur C. Clarke, que também tinha vastos conhecimentos científicos, chegou a dizer que as tecnologias podem ser indistinguíveis da magia. No entanto, a verdade é que a magia desaparece quando se entende como funciona. Daqui a 20 ou 30 anos, quando a inteligência artificial for acessível à escala humana e os híbridos homem-máquina estiverem disponíveis, as pessoas habituar-se-ão e começarão a encará-los como algo normal.

Há alguma tecnologia actual que nos ajude a fazer uma ideia de como será essa combinação?
Não é preciso imaginar coisas muito extraor­dinárias. Quando falamos em organismos híbridos entre humanos e máquinas podemos pensar em coisas correntes às quais já estamos habituados. Eu, por exemplo, sou um ciborgue, pois uso lentes de contacto, que são um produto de alta tecnologia. Imaginemos que vivia numa sociedade primitiva e que tinha de caçar para obter alimento. Seguramente, estaria morto há duas décadas. O facto de poder usar óculos ou lentes de contacto aumenta as minhas possibilidades de sobreviver. Se pensarmos bem, esse tipo de progressos repete-se constantemente na actual sociedade. No futuro, compreenderemos mais pormenorizadamente como funciona o nosso metabolismo e o nosso cérebro, e poderemos influir na forma como trabalham.
justiça social

Fala em avanços tecnológicos que irão melhorar a vida dos indivíduos, mas também menciona frequentemente os problemas de justiça social que acarretam...
Parece-me evidente que há muitas coisas que não funcionam, tanto para aqueles que vivem em sociedades opulentas como para os que nasceram em regiões desfavorecidas e têm de abandonar o seu país de origem em busca de melhores condições de vida. É precisamente aí, nas sociedades em que as pessoas são extremamente pobres, que se torna mais evidente que o mundo deve mudar para aumentar as oportunidades e para que haja maior justiça social.

E a tecnologia vai resolver esses problemas?
Tomemos um exemplo concreto. Na década de 1960, um grupo de cientistas e economistas vaticinou que milhares de milhões de pessoas iriam morrer de fome num prazo de 20 anos. Não só isso não se verificou como, graças à nossa capacidade para aumentar a produção de alimentos, fizemos subir de forma inesperada o número de calorias disponível para cada cidadão. A Índia, o Sueste Asiático ou a China, que eram zonas tremendamente pobres, viram aumentar de um modo muito positivo a sua qualidade de vida. Isso deve-se à tecnologia, ao recurso aos transportes, à logística, aos fertilizantes e à produção agrícola. Tudo isso, por sua vez, permite a universalização da educação.

Acha que seríamos o que somos, como espécie, sem a tecnologia?
O Homo sapiens deixou África e conseguiu estabelecer-se em todos os habitats possíveis: ocupou todos os nichos ecológicos do planeta e demonstrou que é inacreditavelmente adaptável. Devemos isso à tecnologia. Agora, chegou a altura de nos interrogarmos sobre se essa adaptabilidade irá atingir um limite. Um dos possíveis resultados das actuais mudanças e dos futuros avanços a curto prazo é que a tecnologia venha a tornar-se autónoma, isto é, que possa tomar decisões por si própria. Assim, irá depender de nós estarmos ou não preparados para o mundo de amanhã, pois esse mundo não vai deter-se para ficar à nossa espera.

Como nasceu o movimento H+
A espécie humana pode, se quiser, transcender-se a si própria, não apenas globalmente – um indivíduo aqui, de uma maneira; outro indivíduo acolá, de outra maneira –, mas também integralmente, como humanidade. Precisamos de um  nome para essa nova crença. Talvez ‘trans-humanismo’possa servir: o homem continua a ser homem, mas transcende-se a si próprio, concretizando novas possibilidade de, e para, a sua natureza humana.” Foi desta forma que se baptizou oficialmente o termo trans-humanismo, cujo símbolo é “H+”.

O texto, revelador, é da autoria de Julian Sorell Huxley (1887–1975) e surge no ensaio Novas Garrafas para Vinho Novo, publicado em 1957. Além de irmão do autor de Admirável Mundo Novo, Julian foi também um distinto biólogo e humanista, e um dos primeiros divulgadores científicos da história.

O britânico foi um fervoroso defensor do aperfeiçoamento da espécie humana através da ciência e da tecnologia. No mesmo ensaio, Julian Huxley sentenciava: “Creio no trans-humanismo. Chegará a altura em que a espécie humana terá alcançado o limiar de um novo tipo de existência, e será tão diferente de nós como nós o somos do Homo erectus. O homem estará, então, consciente do seu verdadeiro destino.”

Pronto para um back-up cerebral?
O empenho em proteger-se de acidentes fatais e um certo desejo de imortalidade levou os trans-humanistas a acreditar numa tecnologia do futuro, a transferência mental ou mind uploading. O processo (que, por enquanto, ainda pertence ao domínio da ficção científica) consistiria em efectuar uma cópia de segurança de toda a informação contida na nossa mente. Isso permitiria transferi-la para um dispositivo independente do cérebro, como um computador ou outro mecanismo alojado dentro de um robô humanóide, por exemplo;  a informação armazenada poderia mesmo voltar a ser implantada noutro encéfalo.

Numa das páginas criadas pelos adeptos desta ideia (http://minduploadingproject.org), assegura-se que a técnica estará pronta entre 2013 e 2025. Os trans-humanistas indicam também que, com o início da transferência cerebral, serão criados dois universos paralelos: um de realidade virtual, em que a existência não estará limitada pelo tempo, mas pelo desejo de viver, e outro tal como o conhecemos.

A ideia do mind uploading é tão inovadora e transgressora como polémica. Há numerosos detractores que a criticam e a consideram irrealista; argumentam que essa emulação do cérebro nunca poderia chegar a funcionar como uma autêntica mente humana. Referem, igualmente, o aspecto filosófico da questão, pois o conceito de identidade diluir-se-ia no novo contexto.

B.M.

SUPER 155 - Março 2011

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