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quinta-feira, 2 de março de 2017

Notícia - Os pioneiros da Internet em Portugal


Corria o ano de 1994. Mês de Abril. “A Lista de Schindler” tinha acabado de ganhar o Óscar de melhor filme. Nos Estados Unidos, os telespectadores já se andavam a rir com “Seinfeld”, mas em Portugal as televisões privadas ainda davam os primeiros passos. Eram tão recentes que o “Big Show SIC” ainda não tinha sido inventado. Paralelamente, no país que ainda não conhecia o Macaco Adriano, um grupo de académicos já andava a mexer na Internet, à revelia dos restantes milhões de portuguesesA partir de Abril de 1994, as coisas começam a mudar: num seminário intitulado "Portugal na Internet", em Lisboa, foi mostrada ao público e aos jornalistas, pela primeira vez, a Internet em funcionamento. A partir desse dia, cada um de nós ficou um bocadinho mais perto do mundo que conhecemos hoje.

“Esse seminário marcou claramente o aparecimento ao grande público da Internet em Portugal”. Quem recorda o evento é o homem apontado como o “pai” da Internet em Portugal: José Legatheaux, actual sub-director da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Mas em 1994 era o “homem do momento”. A Internet em Portugal passava, necessariamente, por ele.

Em 1994 andava, portanto, o mundo académico português deslumbrado com a Internet, imerso num frenesim de oportunidades, apesar de o português médio, o típico “António Silva”, não fazer ainda ideia que os computadores se podiam ligar em rede e que era possível enviar uma mensagem para o outro lado do mundo e receber a resposta no próprio dia. Na própria hora. No próprio minuto.

Pedro Ramalho Carlos, o homem que ajudou a fundar uma das primeiras empresas privadas de fornecimento de Internet (ISP), a IP, em 1995, era por esses dias um jovem estudante do Instituto SuperiorTécnico mas ainda se lembra bem da emoção que sentiu quando tomou o pulso a “isso” da Internet, quando enviou e recebeu os seus primeiros e-mails. “Era inacreditável enviar uma mensagem para o outro lado do mundo, na Califórnia, e poucos minutos depois ter uma resposta (...) Hoje este imediatismo é mais que natural”, mas na altura as coisas podiam arrastar-se, por correio normal, durante várias semanas. “Com a Internet e o e-mail tudo se passava em poucos minutos”.

Alguns meses depois da “apresentação oficial” da Internet em Portugal, o deputado José Magalhães (actual Secretário de Estado da Justiça e da Modernização Judiciária e um dos primeiros “rostos” da Internet no nosso país) publicou o primeiro livro em Português sobre como usar a Internet e, a partir daí, a palavra começou a penetrar no léxico, embora só se generalizasse dois ou três anos depois. Mas a comercialização e acessibilidade da Internet ao grande público, isso só se verificaria a partir de 1999/2000.

No início era o isolamento

Começando, porém, o relato em Abril de 1994, fica por explicar como chegou, de facto, a Internet a Portugal. Para isso teremos que recuar quase uma década e meia, até 1978. Os verdadeiros pioneiros da Internet em Portugal tomaram contacto com ela por esta altura, definitivamente ainda na década de 1970.

Pedro Veiga - presidente da Fundação para a Computação Científica Nacional (FCCN) - era então assistente do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e começou a ter contacto com o universo das redes de computadores, “embora apoiadas em tecnologias muito diferentes das da actual Internet”, explica.

José Legatheaux teve o seu primeiro contacto com a Internet em França, enquanto fazia o doutoramento, entre 1983 e 1987. “Nessa altura só algumas universidades e alguns institutos de investigação estavam ligados à rede na Europa (muitos poucos). Nos EUA existiam mais universidades e empresas ligadas, mas tudo estava confinado no essencial ao mundo académico”, explica.

“As principais aplicações eram o e-mail (a principal), a transferência de ficheiros por FTP (File Transfer Protocol) e o login remoto. A Internet era um campo de estudo e simultaneamente uma ferramenta de trabalho para a colaboração internacional e o acesso a informação e a computadores remotos”, indica ainda o professor universitário.

Numa altura em que os “pioneiros” portugueses ainda só estavam a começar a tomar contacto com este “maravilhoso mundo novo”, nos Estados Unidos já era possível trocar, quotidianamente, e-mails entre computadores através da ARPANET, a rede precursora da Internet e que derivava de um programa militar chamado ARPA.

Mas em Portugal a Internet continuava a ser uma coisa confinada apenas a um punhado de pessoas. “No meio académico português no final dos anos de 1980 já existiam alguns académicos que conheciam a Internet - visto que a tinham utilizado esporadicamente quando estavam no estrangeiro, ou ouvido falar nela - e que desejavam interligar as universidades entre si e estas com a Internet para potenciar o seu trabalho de investigação e contactos com o estrangeiro”, recorda Legatheaux.

Paralelamente, uma nova geração de engenheiros informáticos começou a aprender o “bê-a-bá” do TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol), desenvolvido nos EUA entre 1972 e 1973 por Vinton Cerf - e que, basicamente, punha os computadores a comunicar entre si de forma simples, fiável e flexível. Este é o protocolo sobre o qual ainda hoje assenta a Internet.

“Na altura (finais da década de 1980) não havia nenhuma ligação de Portugal à Internet, mas comecei a utilizar essa tecnologia [TCP/IP] em vários projectos. Era um pouco como se aprendêssemos a falar uma língua de um país longínquo, mas apenas a falávamos entre os colegas, sem poder praticar com os ‘nativos’ pois não havia ligações entre os computadores portugueses e os do resto da Internet (que na altura era praticamente totalmente americana)”, recorda Pedro Ramalho Carlos.

Universidades portuguesas ficam ligadas

Só a partir de 1990 é que, finalmente, as universidades portuguesas puderam ligar-se à Rede. “O projecto de ligação das universidades portuguesas à Internet e o estabelecimento da primeira ligação internacional decorreu sob a minha coordenação entre 1990 e 1991”, explica José Legatheaux.

“No final do projecto, que foi subsidiado pela Fundação para a Computação Científica Nacional (FCCN), as principais universidades portuguesas passaram a ter acesso à Internet”. Minho, Porto, Aveiro, Coimbra, Instituto Superior Técnico, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, e as Faculdades de Ciências da Universidade de Lisboa e da Universidade Nova passaram a poder aceder à Rede das redes. “A maioria de nós queria estar ligado ao mundo e ter a informação na ponta dos dedos, era esse o sentimento dominante”, explica Legatheaux.

Também o domínio “.pt”, passou a existir por volta desta altura, depois da invenção do Domain Name System, ou DNS (introduzido em 1984), que veio organizar o sistema de gestão de endereços IP (é, por exemplo, aquilo que transforma o URL www.publico.pt num endereço internet passível de ser usado por máquinas).

Em 1990 o domínio ‘.pt’ passou a ser reconhecido internacionalmente”, recorda Legatheaux, que veio a assumir a tarefa de coordenar o “estabelecimento das ligações, o registo dos domínios abaixo de ‘.pt’, por delegação da FCCN, que mantém a gestão do domínio de Portugal”.

Após a invenção da World Wide Web, no início da década de 1990, ainda baseada no software desenvolvido no Centro Europeu de Física das Partículas (CERN), na Suíça, começam igualmente a ser desenvolvidos os primeiros browsers.

“Quando a Web foi inventada lembro-me bem de realizarmos um seminário para universitários por volta do fim de 1992 ou 1993 onde se mostrou a Web a funcionar ainda baseada no software do CERN. A Netscape só apareceu com o primeiro browser em 1994/95, se bem me lembro. Depois a maioria das universidades começou a transformar os seus sites - que estavam a usar outras tecnologias - para a tecnologia Web”.

Efectivamente, só após a institucionalização do www é que Internet se tornou apelativa para a maioria das pessoas. “Ainda na fase inicial, o surgimento da Web e dos browsers, enquanto aplicação que tira partido da Internet para partilhar e organizar informação de qualquer tipo, é que tornou a Internet acessível e interessante à maioria da população capaz de utilizar um computador”, comenta Pedro Carlos.

A “World Wide Wait”

No início da década de 1990, ainda não havia empresas privadas que fornecessem Internet aos cidadãos nacionais. Edifícios cobertos por wireless eram ainda do domínio da ficção científica. “As primeiras ofertas comerciais só apareceram no final de 1994 e, depois, com uma oferta mais diversificada, entre 1995 e 1996”, recorda José Legatheaux.

Até 1994, quem se queria ligar à Internet a partir de Portugal, só tinha uma hipótese: fazê-lo através do INESC (Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores) e do PUUG (Portuguese Unix Users Group), a associação de utilizadores de sistemas operativos Unix que, em parceria, estabeleceram uma ligação internacional - na altura, a Amesterdão - “à estonteante velocidade de 19.2 kilobits por segundo (mil vezes mais lenta do que aquilo que hoje cada um de nós tem em suas casas)”, recorda Pedro Ramalho Carlos.

“Essa ligação funcionou durante vários anos como a ligação de Portugal à Internet até surgirem os ISP [Internet Service Providers – operadores de serviço de acesso à Internet]”, explica.

Para além de virtualmente inacessível aos cidadãos comuns, esta ligação era, cumulativamente, bastante cara. “Ter acesso ao e-mail (ainda não havia Web) custava 40 contos nessa altura [200 euros] mensais (...) Não havia outros ISP”, recorda Mário Valente, que, querendo colmatar esta falha, resolveu criar, ainda em 1994, o primeiro ISP privado português: a Esotérica.

Recém-estreada no mercado luso, a Esotérica cobrava dez contos (cerca de 50 euros) por trimestre, o que dava cerca de 16 euros por mês, com a vantagem de não cobrar por tráfego. Ou seja, o preço era fixo e o acesso era ilimitado.

A Esotéria, a IP e a Telepac foram os três primeiros fornecedores privados de Internet em Portugal. Quem tem hoje pelo menos 30 anos lembrar-se-á com certeza destas empresas, mas quem não cresceu com isto deve achar implausível o facto de um utilizador, tomado pela esperança mas receando o pior, se encolher diante dos “ghrrrr” e dos “biiiiiiiiiiiiips” até que, finalmente, o ecrã do seu computador ganhava vida. Era a “World Wide Wait”, no trocadilho jocoso proposto por Pedro Ramalho Carlos, que, por seu lado, resolveu fundar a IP em Julho 1995, com mais quatro sócios.

Nessa altura, recorda Pedro Carlos, chegou a ir propor à Portugal Telecom a criação de uma empresa que fornecesse o acesso de Internet ao mercado em geral e de o responsável pelo departamento de operação de dados da empresa lhe ter dito que não estava interessado em parcerias, porque “isso da Internet é uma coisa de académicos”.

À velocidade da luz

A partir de 1999/2000 tudo muda, em grande medida devido à liberalização do mercado das telecomunicações. O acesso também deixa, por esta altura, de se fazer exclusivamente via modem, passando-se a fazer via cabo ou ADSL.

“Começámos pela velha linha telefónica, passámos no início dos anos 2000 com a banda larga always on, e mais recentemente com a mobilidade e a ultra-broadband. Tudo isto induzido pela concorrência entre operadores, em benefício dos consumidores. Infelizmente a concorrência nesta área em Portugal foi sempre muito desnivelada, o que fez com a maioria dos pequenos operadores já tenha desaparecido”, recorda Pedro Carlos.

“Por volta do ano 2000, o panorama do acesso à Internet estava totalmente mudado. A maioria dos acessos era providenciada de forma pública por operadores de telecomunicações de grandes dimensões nacionais ou estrangeiros. Todas as empresas pioneiras tinham sido compradas pelos operadores internacionais”, resume Legatheaux.

O futuro é amanhã, ou terá sido ontem?

Chegados aos dias de hoje, estamos já na idade madura da Web 2.0, a das redes sociais, dos blogues, da comunicação interpessoal em tempo recorde, do Twitter e do Facebook, do iTunes e do YouTube. Dos chats, mensagens instantâneas, Net no telemóvel e wireless no café.

Questionados sobre se conseguiriam adivinhar que, em apenas uma década e meia desde a sua apresentação aos portugueses, a Internet se transformaria naquilo que é hoje - praticamente um bem de primeira necessidade -, as respostas dividem-se.

“Quem disser que sim [que conseguia adivinhar], deve estar a mentir. Era difícil de imaginar a generalização e extraordinária descida dos preços por bit transferido”, argumenta Legatheaux.

Mário Valente assume, porém, sem falsas modéstias, a sua antevisão: “Não só imaginei como exigi! Numa conferência em 1995, onde estava presente José Magalhães, disse que aquilo que queria era, daí a uns anos, poder estar na praia a aceder à Internet com o meu portátil. Parecia ficção científica e, na altura, as pessoas riram-se muito. Mas aconteceu”.

Pedro Ramalho Carlos corrobora: “Tive a certeza que com a Internet estava ‘em cima’ de algo que ia mudar a maneira como trabalhávamos, como nos divertíamos e como nos organizávamos enquanto sociedade. Confirmou-se e estou certo que a Internet vai continuar a ser uma peça fundamental no progresso da Humanidade”.

Sobre o futuro da Internet e sobre os saltos qualitativos que a Rede ainda dará, quase todos os “pioneiros” são unânimes: a Rede vai estar em todo o lado, vai antecipar as nossas chegadas a casa, dizer-nos o que falta no frigorífico e ajudar-nos a circular pela cidade: “É a Internet das Coisas, aquela que vai permitir ligar à Rede muitos dispositivos domésticos, pessoais e objectos do dia-a-dia”, vaticina Pedro Veiga.

Mário Valente partilha da mesma opinião: “outro salto que terá grandes consequências é a ligação de tudo à Internet. Semáforos, luzes, paragens de autocarro, carros, portas, edifícios, televisores, etc.; tudo o que é objecto com o qual interagimos. Isso vai ter enormes repercussões na forma como o mundo funciona. Especialmente quando isso for ligado ao factor localização (GPS). Eu posso estar numa cidade, apontar para um monumento, e obter uma descrição falada do mesmo, por via da identificação da imagem e por via do posicionamento GPS”.

E não esquecer “a facilidade com que trataremos de coisas que dantes exigiam ir pessoalmente para filas”. “Será um facto marcante”, assinala Legatheaux.

Por outro lado, quase todos coincidem no mesmo: haverá Internet cada vez mais rápida e para mais pessoas, a partir de terminais móveis.

Outros grandes saltos qualitativos que se espera que a Internet venha a apresentar nos próximos tempos são a generalização do vídeo e da televisão através da Rede e a banalização do cloud computing (o armazenamento das informações pessoais em servidores online, independentemente dos terminais usados por cada utilizador).

Acerca dos riscos e das ameaças que o futuro da Internet poderá vir a trazer, quase todos os “pioneiros” concordam: por um lado haverá cada vez maiores problemas de segurança e de fiabilidade na Rede e, por outro, “crescerão também, e muito, os problemas de privacidade”, indica Legatheaux. “Este problema está a ser desprezado e vai custar caro às liberdades individuais que conhecemos”, alerta.

E, em última análise, imaginando um futuro em que passe a existir uma “fusão da maioria das tecnologias de acesso a redes numa grande rede gigantesca, omnipresente, de alta velocidade, com base na tecnologia da desenvolvida na Internet”, há o risco de as coisas fugirem ao controlo das instituições. “Há a possibilidade de se criarem empresas e organizações tentaculares a nível mundial completamente fora do controlo das leis que conhecemos”, alerta o “pai” da Internet em Portugal.

Convém, porém, não esquecer, que Portugal continua a ter mais de metade da sua população “desligada”. De acordo com os mais recentes dados do Bareme Internet da Marktest, só perto de 4,5 milhões de portugueses acedem regularmente à Internet. Apesar deste indicador, o número de utilizadores em Portugal Continental aumentou dez vezes nos últimos 13 anos e cerca de 2,95 milhões de utilizadores estavam ligados, no final do segundo trimestre de 2009, através de banda larga móvel, segundo a ANACOM.

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